Ensaio – O livro e as cidades interioranas, por Mailson Furtado

O livro e as cidades interioranas

Mailson Furtado *

Foto: André Argolo

Por volta dos 7 anos de idade de forma desconcertada conhecia Fortaleza, minha primeira cidade grande. Das vagas imagens da viagem, mora comigo de forma bem viva O COMPRAR DE UM GIBI numa banca de jornal, essa, minha primeira experiência de comprar um livro. que incrível haver um LUGAR pra se comprar livros!, pensamento inocente e óbvio, mas na cabeça daquele menino da pequena Varjota, lá nos anos 1990, que há poucos anos havia se alfabetizado, não, afinal nunca tinha visto/vivido tal experiência. Passados vinte e tantos anos dessa vivência, as bancas de jornais não chegaram por cá, quanto mais as livrarias, mas sim, consegui ter acesso aos livros. Então, onde encontrar os livros nessas pequenas cidades do interior do Brasil? Onde comprá-los? Onde vivenciá-los?

Alguns dessas perguntas creio que a mim, naquela época, já tenham surgido, e no adentrar desse mundo na busca por livros, encontrei-os em caminhos possíveis: nas escolas, bibliotecas, feiras semanais e até em revistas de variedades. Enfim, tornei-me o leitor que pude, e junto disso, o desejo de algumas experiências literárias que acabaram por vingarem em livros.

Dentro desse trilhar, nos últimos anos tive a oportunidade de bater perna por várias regiões do Brasil para conversar sobre literatura, livros, leitura e tudo que embala este universo das letras, muitas e muitas coisas aconteceram e dentro dessas experiências, um refletir especial que ainda venho em busca da compreensão: livrarias e espaços de consumo de livros nas pequenas cidades do interior deste Brasil.

“Mailson, mas tua cidade não tem livraria?”, “Como ‘cê compra seus livros?”, “Como ‘cê vende seus livros?”. Foram algumas das tantas perguntas que ainda surgem, como algo surpreendente a quem caminha neste campo da literatura e não dispõe deste acesso (pelo menos da forma mais convencional possível). Por tanta surpresa terceira, comecei a pensar mais sobre tal questão, o tal mercado editorial de onde vivo no imenso sertão nordestino.

O Ceará possui 184 munícipios, destes, pouco mais de 10 possuem livrarias especializadas (aquelas que se dedicam exclusivamente à venda de livros ou têm estes como principal produto de comercialização), distribuídas praticamente apenas em 3 regiões do estado: Fortaleza e algumas cidades da região metropolitana; Sobral na zona norte do Estado; e Crato e Juazeiro do Norte, no Cariri. Tal situação não é muito diferente em Pernambuco, Piauí, Paraíba, Rio Grande do Norte, Pará, Amazonas… Como então o livro chega cá nesses rincões do Brasil?

De forma sistemática, nos interiores do Nordeste, a chegada do livro ou da literatura aconteceu inicialmente com os folhetos de cordel a passearem em matulões pelas feiras, único evento presente em toda e qualquer localidade em meados do século XIX. Obviamente já havia circulação de edições um tanto mais trabalhadas, inclusive publicadas no próprio Nordeste, mas totalmente restrita à classe dominante, a única letrada na época. Tal panorama mantém-se até meados da metade do século XX, onde acontece um primeiro esboço da institucionalização do ensino no país, que trouxe consequentemente o livro ao encontro de tantos ainda sem oportunidades, e onde apareceram os primeiros espaços para leitura: as primeiras bibliotecas, geralmente dentro de escolas.

Dentro dessas bibliotecas, que com o passar das décadas foram se fortalecendo (e onde inclusive me fortaleci enquanto leitor), que o encontro com livros se deu para tantos, e afirmo que ainda hoje nas pequenas cidades estas sejam os principais espaços de acesso e circulação do livro, sejam esses institucionalizados ou independentes.

Apesar do histórico seja distinto a outras regiões do Brasil, quanto à chegada da literatura por meio de folhetos de cordel, o acesso aos livros nas pequenas cidades, é muito parecida ao longo de todo território nacional. Assim o papel das bibliotecas, principalmente as comunitárias, que nos últimos anos se multiplicaram, é de fundamental importância para o encontro e vivência com o livro.

Mas e as livrarias?

Nesse trilhar histórico, infelizmente nos interiores do Nordeste (e creio que em grande parte do país também) a livraria ainda é um espaço restrito geralmente a capitais ou cidades maiores em população ou economia, com raras e felizes exceções, que nos últimos anos vêm de forma gradativa aumentando – as chamadas livrarias de rua, espaços que pralém de venda de livros, são de convivência.

Enfim, nas pequenas cidades, hoje, onde então comprar livros? Ainda nas feiras?

Não.

Com o início da massificação da internet na metade da última década, esta se tornou a “livraria” dessas pequenas localidades. O inesgotável acervo, facilidades de compra, por vezes por preços menores que nas próprias livrarias atraem, e por um prisma puramente econômico acabam por corroborar que esta simples ferramenta de entretenimento “substitua” o espaço físico. Quando não. Quando nunca. Comprar livros não se encerra no simples comprar. Não é como comprar sapatos ou tijolos. Comprar livros é uma experiência cultural, e a livraria pralém de um espaço de compra-e-venda é mais ainda um espaço de convivência. Um lugar para se estar, não para passar apenas.

Dentro do cenário atual, fatos importantes na última década se firmaram, como o aumento do circuito de eventos literários nas pequenas cidades, que oportunizou a muitos comprarem seus livros em seu próprio lugar. Exemplos disso, em 2019, último ano pré-pandemia, aconteceram por volta de 50 feiras no interior baiano, outras 20 no interior paraibano, fato semelhante em outros estados, como Pernambuco e Ceará. Momentos destes acabam por inventarem leitores e consumidores de livros, que de forma osmótica “suplicam” por um fortalecimento do mercado do livro nesses lugares, antes inexistente. Outro fato, é que com a possibilidade de produção de obras de autores residentes dessas pequenas cidades, algo impensável décadas anteriores, há o aquecimento de um mercado independente do livro, que novamente criam espaços para o vivenciar o livro nos interiores. Todas essas questões se somam para o fortalecimento de novos cenários para o livro e tudo que o envolve, permitindo que este chegue de forma mais possível nessas regiões, anos antes, tão distantes.

No entanto, muita coisa há para se debater e se entender sobre um quadro ainda tão desigual em um país-continente como o Brasil. Políticas de incentivo fiscal à criação de espaços de livros, debates mais aprofundados entre autores, editoras, distribuidores e consumidores são algumas das primeiras possibilidades para a mudança, para que de fato a chegada das livro seja acessível a todos os rincões desse país.


* Mailson Furtado (Varjota, CE), autor e editor independente. Entre suas obras, à cidade (Prêmio Jabuti Livro do Ano 2018), enviado no Pacote de Textos de dezembro de 2018

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