Ensaio – É o corpo e é a cabeça, por Nara Vidal

Nara Vidal *

A literatura é, muito frequentemente, como escolher andar sozinha às duas da manhã, dentro da névoa a ouvir passos. Corra e os passos avançam com o medo. Pare e você morre.

Sobre esses tipos de solidão, Duras escreve lindamente. Acho cortante e profunda a referência que ela faz à casa como lugar solitário. Esse mesmo lugar para onde corremos por proteção, intimidade, descanso. Mas é lá dentro que também é possível nos encontrarmos despidos de tudo o que colocamos antes de sair, seja um casaco, seja o sorriso. Só dentro dessa solidão é possível escrever. Não que seja sempre confortável estar só. No entanto, precisamente esse incômodo me parece ser a única via da escrita honesta, aquela da qual quero me livrar, aquela que me ocupa de tal forma exagerada que precisa ser cuspida. Mas é preciso estar ali, à disposição desse espinho fundo na pele, como um corpo vazio à espera de uma posse demoníaca.  Para uma mulher que não podia andar pelas ruas desacompanhada, a não ser que desejasse correr riscos predatórios, estar em casa em solidão crua e nua também não era exatamente uma opção.

Partindo de Woolf e desembocando em Duras, é simples perceber esse trajeto. Um teto todo seu é profundamente mais do que um espaço na casa dedicado a uma mesa onde arranjar uns papéis e livros para consulta enquanto se ocupa de pensar e escrever sobre temas essencialmente seus e que serão considerados marginais e específicos. Basta da categoria voz feminina. Dito isso, ainda não há equilíbrio e democracia suficientes para deitarmos por terra com essas divisões porque eu sei que, enquanto escrevo este texto, há uma outra mulher, em outras condições, que não aprendeu a ler e que sofre a violência do Estado e da casa, a mesma casa que foi feita para se sentir só e se despir a ponto de escrever. Mas ela não escreve: escrevem por ela. Escrevem por ela porque suas palavras não alcançam os ouvidos de quem nunca foi subestimado. Eu sei, ainda falamos disso. Eu sei, ainda é pauta, ainda é debate, ainda é incômodo. Ainda. E, claro, se você não é afetado por essas questões, você terá muito pouco tempo e paciência para ouvi-las.

Além da solidão da casa, há as ruas. Becos escuros, desertos, áreas de descampados, locais insalubres (para quem?), zonas de perigo.

Platão costumava fazer longas caminhadas com amigos e seguidores enquanto discutia tópicos e testemunhava culturas. A ideia de andar, pensar, discutir e ver o novo está ligada, por exemplo, à pintura de Rafael “A escola de Atenas”, onde o filósofo é representado em companhia de amigos e estranhos. Um conceito que abrange, inclusive, a liberdade humanista permeada pela potência intelectual, característica principal do Renascimento.

Eu desejo viajar e explorar o mundo como um homem. Ao leitor e à leitora, peço que ponderem em relação a essa colocação que esconde, propositalmente, nuances que sugerem um possível desserviço da minha parte, irresponsabilidade até, ao afirmar que um dos meus desejos é caminhar, flanar pelo mundo, explorar paisagens e cidades como se eu fosse um homem, aparentemente ignorando o vigor feminista que vivemos. Há nessa provocação uma proposta de debate. O tema woolfiano examina e propõe a reflexão sobre o potencial feminino e sua constante ameaça de limites e convenções sociais. Falamos aqui da década de trinta, século vinte. Difícil reconhecer que essa agenda feminista e feminina mudou tão pouco. Numa carta à amiga Ethel Smyth, Woolf fala da sua absoluta paixão por Londres e esclarece a profundidade do sentimento afirmando que a cidade é seu único patriotismo. Claro, não é complexo entender o apelo que Londres tem a escritores, artistas, historiadores. Um passeio por Covent Garden, Bloomsbury, Shoreditch, Kensington e os sentidos se aguçam, a vida melhora, os olhos saltam, a vida se alarga. Londres é, para mim, um mundo inteiro. Tanto pela miscigenação cultural que, indistintamente, alcança longe, mas também pela oportunidade de me deixar andar sozinha e em paz. Quase como se eu fosse um homem. Volto a essa reflexão através do belo conto de Susan Irvine, “Fearlessness”, da magnífica revista Gentlewoman, edição 17.

No seu texto, Irvine aborda um meio termo que não é uma concessão. É uma completa frustração. É uma quase liberdade, uma quase independência, um quase todo. Numa lógica, o quase é o mesmo que o nada. Não há, na Matemática, uma resposta quase certa, um cálculo cujo resultado é quase o que se espera. O quase é o mesmo que o fracasso, a resposta errada. Não há segundo lugar. O que existe é o primeiro e o último colocados. Enquanto planejamos flanar e explorar o mundo à noite, em florestas, em becos, em praias desertas, ainda observamos, mesmo que atônitas e em choque, os homens vestidos em sua tranquilidade ganharem, sem qualquer esforço, o primeiro lugar. Nós, mulheres, ficamos em última colocação. Enquanto tivermos um pouco de receio, um pouco de parcimônia, um pouco de cuidado para sair, andar pelo escuro sem olhar para trás, estamos em clara desvantagem. Afinal, corremos de quê? Que medo é esse que nos impõe companhia, preferencialmente masculina, para adentrar territórios mais densos, menos explorados, mais escuros e, portanto, com mais possibilidade de rico reconto e testemunho? Quando nossos pais, irmãos, namorados, primos viram suas cabeças para seguir com os olhos o corpo de uma mulher, talvez estejam nos dando a resposta. Por que se portar como predadores pode ter nos homens um apelo de virilidade? Ao contrário, se enfraquecem. Mas fortalecem, e nem sabiam, vejam, a cultura da objetificação de gênero que culmina com a violência, notadamente a do estupro. Aquele que objetifica um corpo de mulher é o mesmo que pode oferecer proteção e companhia para a namorada, a filha, a prima, a tia, a mãe. Os olhos estranhos e insistentes que nos encaram nos diminuem. São os homens que queremos evitar quando estamos no escuro. E queremos evitá-los porque são eles que, se estivessem junto de nós para nos proteger do perigo, no dia seguinte voltariam a perseguir, com os olhos ou comentários, o corpo de uma mulher estranha.

A quem interessa a perpetuação da nossa suposta pequenez e incapacidade física, psicológica, intelectual e emocional? Interessa ao sistema que foi estabelecido e serve como referência e exemplo. Tudo que o chacoalhe é ameaça. Se soubessem que aqui, neste texto, quero apenas o direito de andar sozinha no escuro sem olhar para os lados…

Ou talvez saibam que quando reclamamos de direitos básicos como o de estar sozinha, reclamamos metaforicamente e queremos mesmo é o mar inteiro, sem exceções ou cotas.

Sinto uma urgência em auxiliar a propagação do debate sobre o nosso direito de flanar e estar sozinhas em casa ou na rua. Flâneur, palavra masculina feita de independência, flair, privilégio intelectual de explorar mundos. Não há necessariamente uma versão feminina da palavra. Flâneuse, muitas vezes, está associada à mulher de rua, sem casa, pobre e sem abrigo. Um vagabond não é o mesmo que uma vagabunda.

Enquanto aprecio e desejo a oportunidade de debater em companhias estimulantes enquanto caminho e penso em filósofos gregos, desejo mais profundamente poder viajar, explorar cidades, estar sozinha como se fosse um homem ou como uma mulher que escreve.


Nara Vidal

* Nara Vidal é escritora e nasceu em Minas Gerais. Escreve frequentemente para o Jornal Rascunho, A Tribuna de Minas e a Revista 541. Autora do romance Sorte (terceiro lugar no Prêmio Oceanos 2019) e do livro de contos Mapas para Desaparecer (finalista da Prêmio Jabuti 2021). É editora da Capitolina Revista (Prêmio APCA 2020). Mora na Inglaterra.

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