Ensaio – Apontamentos sobre o Fazer Literário ou Da Importância de Escrever-se a Vida, por Francisco Thon
Apontamentos sobre o Fazer Literário ou Da Importância de Escrever-se a Vida
Francisco Thon
Quando penso sobre literatura e o fazer literário, o que me vem à mente é uma prática em que o indivíduo mergulha em si mesmo, em que se é possível o nadar e o banhar-se nas águas de seus oceanos, aquilo que lhe é (des)conhecido. Aquilo que tão-dentro nos aponta ou nos chama a nós próprios, mas que, frente às violências em nossas culturas, tão bem nos fica escondido, tentando revelar-se sob os diferentes gritos de nossos corpos, em parte traduzindo-se entre abertas metáforas, a partir dos mais diversos sintomas.
Afirmo também que fazer literatura é permitir-se perder uma forma e tornar-se algo sem que se precise o que virá. Algo que apenas devenha (Deleuze & Guattari, 2012), que apenas seja, num caminho que apenas se faz. É perder o próprio nome, o nome que nos foi atribuído em cartórios, famílias, escolas e nas mais diversas instituições, para que então sejamos pássaro, fogo, céu, terra, chão e tudo o mais possível e impossível (Barbosa Junior & Baptista, 2021). Um movimento em que nos pulse a vida, o que somos e nos tornamos, a partir do mais diferente em nós (Deleuze, 2018).
E as palavras que (nos) escrevemos sobre o papel têm na forma, na tinta, nos seus ditos e, principalmente, não-ditos, uma guerra, a guerra que se passa em nosso corpo, entre nossas potências e os valores de nossas culturas. Uma guerra cuja tensão, cujas violências e, quem sabe, possibilidades de respiros, estão em nosso dia a dia, presentes nas sutilezas de cada pensamento, de cada ato, de cada gesto, naquilo que, muitas vezes, nos passa despercebido (Barbosa Junior & Baptista, 2021).
Estes escritos são escritos de guerra, escritos de sangue, portanto. Escritos que, enquanto se produzem e nos produzem, não revelam apenas sobre quem escreve, mas sobre uma cultura, embora nunca um escritor e seu escrito digam de toda uma cultura. Pois as palavras não dão conta de tudo o que é um individuo nem uma cultura. Às palavras muito sobra. Às palavras muito falta.
E para ser escritor, assim acredito, não é preciso seguir cânones, afirmar-se filósofo ou estudioso, ou mesmo reproduzir o que tantos outros dizem, em busca de ser outros e não si próprio. Imagine você se escritores como Dostoiévski ou Graciliano Ramos, por exemplo, buscassem se afirmar o que mais fosse senão eles próprios? Imagine ambos vomitando dogmas ou filosofias, presos à ilusão de que isso lhes faria grandes escritores? Quão enganados estariam! Pois o escritor não busca ser outros, mas ser e tornar-se, produzir-se, fazer-se entre seus dentros e foras. O escritor busca, de algum modo, liberar o pássaro que lhe está contido, que lhe está na gaiola (Deleuze & Guattari, 2012). Busca parir-se, num instante cujos relógios e seus cronômetros não contam. Num instante em que nada se conta além do instante da própria vida.
Trata-se, portanto, do exercício da autoria, exercício este que é mais do que escrever um texto sobre um papel. Até mesmo porque, conforme se pode notar, um texto sobre um papel nunca é apenas um texto sobre um papel. É sempre mais. Muito mais. Pois o ato de escrever um texto, seja ele qual for, não se limita à execução de uma motricidade e à reprodução de uma grafia. O que lá está é mais do que o que se diz ou está dito. Um texto sobre um papel trata-se da ordem, da palavra que nos ordena (Deleuze & Guattari, 2011), trata-se do corpo, do possível. E o escritor, aquele que exerce a autoria, trata de escrever a vida. A sua vida. Ele subverte a ordem. Subverte a gramática da vida. Abre seu corpo ao novo, ao desconhecido (Barbosa Junior & Baptista, 2021). Vai além do campo do possível. Está no impossível. E é pelo impossível que cria e se cria.
Dito isso, e em poucas palavras, resta-me afirmar que podemos, cada um ao seu modo, ser escritores. Não seremos Guimarães. Não seremos Graciliano. Não seremos Dostoiévski. Mas seguiremos em busca de nós mesmos, sendo o nosso melhor possível. E isso já é um grande desafio. Talvez o maior ou um dos maiores de nossas vidas.
Que nos escrevamos, portanto.
Aveiro, Portugal, 07.07.2021
Referências
Barbosa Junior, F. W. S., & Baptista. M. M. R. T. (2021). Reflexões sobre escritas, hegemonias e resistências no isolamento social. In J. C. O. Martins, C. F. Melo, & F. W. S. Barbosa Junior (Orgs.). Ensaios da pandemia: o isolamento social entre caos e recriação da vida (pp. 251-273). Curitiba: Appris.
Deleuze, G. (2018). Diferença e repetição. São Paulo: Paz & Terra.
Deleuze, G., & Guattari, F. (2011). Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol. 02. São Paulo: Editora 34.
Deleuze, G., & Guattari, F. (2012). Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol. 03. São Paulo: Editora 34.
Francisco Thon – Sertanejo. Poeta. Psicólogo (Universidade de Fortaleza), Mestre em Literatura (Universidade de Évora/Portugal) e em Psicologia (Universidade do Minho/Portugal) e Doutorando em Estudos Culturais (Universidade de Aveiro/Portugal), estudando sobre escritas e relações de poder na velhice – investigação financiada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT). Também autor das obras poéticas Impermanências (2016) e dos males da falsa hóstia ou a história em que uma hóstia me engoliu (2019).
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