Ensaio – O Ventre Aberto da América Latina: escritoras latinas frente ao cânone universal, por Samara Ribeiro
O Ventre Aberto da América Latina: escritoras latinas frente ao cânone universal
“A literatura latino-americana nunca será universal” – disse o professor [um homem branco europeu] do alto de sua soberba, sobre o alto do púlpito do auditório da universidade, sobre o alto da hegemonia ocidental, sobre o alto do “território-norte”, que em sua análise, repousa triunfante sobre o derrotado sul global. Foi assim que o catedrático da renomada universidade europeia encerrou sua fala, naquele que foi meu primeiro evento de literatura fora do Brasil.
Sou uma mulher indígena e atualmente vivo em Portugal. E foi num mês como este, em agosto, que ouvi esta sentença, poucos dias depois de atravessar o atlântico e ter amarrado minha canoa nesta outra margem do mar. Agosto é também o mês que marca o período de celebrações à Pachamama, la Madre Tierra. Esta cerimônia de origem indígena é realizada por toda a Abya Yala[1], desde antes da invasão e, claro, antes também, de ter o seu nome engolido por outro, não por acaso o nome de um dos usurpadores deste território: Américo Vespúcio.
Recordo-me de que, poucos dias antes de subir à bordo da metálica e imensa canoa flutuante, estive a rever livros e fotografias e a revolver a terra fofa e úmida das minhas memórias. Nesse arado de reminiscências, como quem prepara o solo para a nova semeadura, peguei num dos livros de minha estante, Boderlands: La Frontera, de Gloria Anzaldúa. De dentro de suas páginas gastas caiu um retrato, era um registro fotográfico do último rito de celebração à Pachamama em que estive, há exatos cinco anos. Na imagem destacava-se um círculo cerimonial de abuelas e abuelos – de origem Quéchua e Aymara – em torno de um grande buraco cavado na Terra, que ali, aberta, encontrava-se pronta para receber as oferendas que lhe eram oferecidas em agradecimento à farta colheita da última estação. Na cosmologia andina as apachetas, como também são chamadas estas aberturas feitas na Terra, são ao mesmo tempo, a representação da boca e do ventre de Pachamama, que se alimenta para gestar um novo ciclo de criação.
A fotografia, vista assim, ao lado do livro de Anzaldúa, provocou em meu corpo uma sensação estranha. Senti como se um espinho me atravessasse o ventre. Era como se uma enorme ferida tivesse subitamente irrompido dentro de mim. Olhei para a imagem da apacheta e foi a primeira vez que perspectivei aquele útero como uma profunda ferida aberta. A dor saía dali e desaguava em meu ventre. Era a dor de uma ferida de morte, uma ferida antiga…uma ferida colonial. Neste instante em que escrevo revivo esta dor.
Falar da América Latina, sobretudo para uma mulher indígena como eu, implica em tocar nestas arregaçadas feridas, primeiro, pela minha ascendência originária, o que me faz recordar que apesar de séculos de extermínio, nossos povos originários permanecem diversos, não cabendo no termo “latino-americano”, demasiadamente redutor e, em certa medida, atenuador do passado de genocídio e aculturação. Segundo, pela minha condição de mulher frente ao patriarcalismo, tão fortemente entranhado em nossa cultura.
Sobre nossa presença plural, lembramos que a “América” é uma ficção, uma invenção, uma heterodenominação, o que quer dizer que carregamos a designação de um outro sobre nós, uma nomeação que despreza nossa origem e nossas várias identidades. A pluriversidade aqui existente foi reduzida pela “monocultura” colonial, cujo objetivo era (e continua sendo), efetivamente, reduzir para dominar. Porém, tal qual um huipil [2] guatemalteco, são muitos os fios de cores que tecem esse chão, sendo impossível falar de uma única América Latina, ou de um único povo. Somos muitos e muitas! Todavia, não romantizo, sei que também carregamos nossas máculas, o machismo é uma delas, um subproduto colonial que encontrou em nosso território, como bem nos lembra Julieta Paredes (2010), um entronque perfeito com o machismo ancestral.
Aquele momento de epifania que vivenciei, escarificou em mim a seguinte certeza: não são apenas as veias – como dizia Galeano -, mas sobretudo, os nossos ventres que sangram. Apesar da ferida colonial ser uma ferida coletiva, partilhada por todes neste sul global é, em nós mulheres, que essa ferida purga e sangra todos os dias. Esta realidade não é uma novidade, pelo contrário, ela se encontra estampada diariamente em nosso cotidiano e nas estatísticas, cujos dados apontam para a América Latina como o local mais letal do mundo para as mulheres (ONU, 2016). Essa hostilidade dirigida às mulheres é refletida nos mais diversos contextos, sendo a literatura um destes espelhos, que nos devolve a imagem de um campo predominantemente ocupado por homens. Olhando para o livro de Anzaldúa fiquei a me perguntar: Quantas escritoras/pensadoras latinas conhecemos e lemos? E do outro lado do mar, será que de lá nos ouvem? Será que sabem que apesar de tudo continuamos vivas?
Pelo sim, pelo não, venho recordar: sim, (re)existimos! Movida pelo desejo de rememorar minha origem, tenho lido mais mulheres indígenas, pretas, LGBTQIA+ e “latino-americanas”. Longe de ter sido tarefa fácil, escolhi três mulheres profundas e fecundas, assim como a Terra, como nossa Abya Yala, são elas: Gloria Anzaldúa, Gioconda Belli e Carolina Maria de Jesus. Estas mulheres apresentam universos distintos e mostram que, mesmo vivenciando realidades diferentes enquanto mulheres indígenas, chicanas, nicaraguenses ou brasileiras, pelo menos duas características serão semelhantes entre elas: o solo em que germinaram e suas feridas abertas.
Gloria Anzaldúa fala destas feridas. Ela que é uma mulher-fronteira, uma chicana de origem indígena, nomeia o lugar da fronteira como uma herida abierta. Sendo mulher, lésbica, chicana, ela se entende como alguém que habita o “entre”, um entre que nada tem a ver com o “neutro”, mas que, pelo contrário, representa o lugar do tensionamento, habitado por aqueles que não se encaixam e não se deixam ser limitados pelas bordas «borders» do classificável.
Em Borderlands: La Frontera (2012), Anzaldúa denomina a fronteira geográfica de «Border» e a fronteira cultural, portanto mais subjetiva, de «Borderlands». Essa ideia percorre toda sua obra, dando-nos a nítida sensação de que a todo momento estamos a transitar num lugar fronteiriço. Essa noção é antecipada já no título do livro, que traz a junção dos termos «Borderlands» em língua inglesa e «La Frontera», em língua espanhola. Sua língua transita entre mundos e territórios, havendo também uma forte presença do espanhol chicano[3], o Tex-Mex[4] e o Nahuatl[5]. A fronteira é a própria representação de seu corpo-texto, que além de metaforizar essa fusão de mundos diversos, representa também o próprio desenho deixado depois do momento do corte, cuja impossibilidade de cicatrização nos comunica uma ideia de eterna atualização da dor – um eterno sangrar – e da constante violência sofrida pelas mulheres originárias deste território. Sangra a Abya Yala, porque sangramos nós, mulheres.
“I will no longer be made to fel ashamed of existing.
I will have my voice: Indian, Spanish, White.
I will have my serpent’s tongue – my woman’s voice, my sexual voice, my poet’s voice.
I will overcome the tradition os silence”.
(ANZALDÚA, 2012, p.81) [6]
Gioconda Belli é uma reputada poeta e romancista, natural de Manágua (Nicarágua), destaca algumas temáticas feministas em seus escritos, nomeadamente as agruras de ser mulher num continente enfermado pelo sistema patriarcal. Nascida no seio de uma família burguesa, foi educada para assumir o papel de esposa e mãe exemplar, mas foi após o arrasador terremoto de Manágua, em 1972, em plena ditadura de Anastasio Somoza, que precipitou em Gioconda um intenso desejo de mudança. O violento tremor de terra destruiu 75% da cidade, bem como um medo antigo que há muito minava o seu desejo de se libertar. A inquietação da terra, que analogamente era também a sua, simbolicamente abriu uma apacheta em seu peito, de onde saiu toda a força que precisava para romper com as amarras conservadoras que lhe atavam. Foi nesta altura, em meio a tantas turbulências, que Gioconda se filiou à Frente de Sandinista de Liberación Nacional (FSLN), onde junto de seu amor pela revolução floresceu também o afeto pela literatura. Sua trajetória na organização revolucionária e outros acontecimentos de sua intensa vida de mulher, migrante, intelectual e escritora é contada de forma envolvente e com uma admirável força narrativa, em seu livro, “El País Bajo Mi Piel: Memórias de Amor y Guerra” (2010).
Sua obra, seja na prosa ou na poesia, apresenta um coro de vozes femininas desejosas por liberdade, cujas reivindicações vão desde à emancipação política ao direito ao prazer, reivindicação esta que culminou na criação do icônico Partido de la Izquierda Erótica (PIE), aludido em sua obra, El País de Las Mujeres (2011).
“Si eres una mujer fuerte
protégete con palabras y árboles
y invoca la memoria de mujeres antiguas.
Haz de saber que eres un campo magnético
hacia el que viajarán aullando los clavos herrumbados
y el oxido mortal de todos los naufragios.
Ampara, pero ampárate primero
Guarda las distancias
Constrúyete. Cuidate
Atesora tu poder
Defiéndelo
Hazlo por ti
Te lo pido en nombre de todas nosotras”.
(BELLI, 1996, p. 32)[7]
Mulher, negra, periférica, ex-catadora de papel, mãe solo e semi-alfabetizada, Carolina Maria de Jesus vem desses universos plurais que coexistem na América Latina. Nasceu em Minas Gerais e migrou com seus filhos para a primeira grande favela de São Paulo: Canindé. Em suas obras fala de um realismo nada mágico. Por mais que pareça fabuloso o “surgimento” de uma escritora da grandeza de Carolina de Jesus em meio a crueza da fome e da vulnerabilidade da favela, “mágico” definitivamente não é o melhor termo para descrever a luta pela sobrevivência destas mulheres excluídas e marginalizadas. Darcy Ribeiro dizia que na América Latina só se pode ser duas coisas: resignado ou indignado. Talvez seja essa indignação e a insistente resistência de nosso povo face à hostil desigualdade que, aos olhos estrangeiros, faz parecer tudo um tanto improvável e fantástico.
Em Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada (1960), Carolina de Jesus escreve a sua própria história, é ela a protagonista de sua narrativa, onde denuncia uma realidade extremamente adversa. A obra foi traduzida para mais de 13 idiomas e atingiu a incrível marca de 10 mil cópias vendidas em uma semana, após seu lançamento em 1960. Apesar do sucesso editorial, a escritora foi sempre colocada nesse lugar do “outro”, este outro que vive nas margens, nas brechas, nas fronteiras, nas “latrinas” americanas criadas pelo sistema colonial. Quarto de Despejo é uma metáfora que a autora utiliza para falar desse lugar, esse “quarto” projetado com a finalidade de ser nada mais que um receptáculo, onde se despeja o lixo, assim como a favela, a fronteira, a Abya Yala, o território-mulher, a Terra e o sul global.
Em abril de 2012, Carolina de Jesus foi homenageada na Academia Carioca de Letras, no entanto, em meio a falas emocionadas e elogiosas, uma voz se ergueu para dizer taxativamente que a obra de Carolina de Jesus podia até ser um diário, mas não Literatura. Era a voz de um homem, branco, acadêmico: um ex-professor de Literatura Brasileira da UFRJ. Infelizmente, esta não é uma voz solitária, mas uma voz que ecoa desde que a primeira nau invasora ancorou nesta terra. Ao ensejar demarcar a fronteira do que é ou não literatura, a academia reproduz o ideal colonial de separar aquilo que tem a aura apolínea da racionalidade e o que é roto, pobre, uma escrita menor. A academia classifica, ordena, hierarquiza, pasteuriza, universaliza. Esse processo, imbuído do olhar arrogante do colonizador, elege quem merece ser lido e quem deve ser apagado, descartando as vozes dissonantes desse sul subalternizado. Esta é a mesma lógica e o mesmo discurso que diminui e silencia as mulheres no domínio das Letras
“Quando eu era menina o meu sonho era ser
homem para defender o Brasil porque eu lia a
História do Brasil e ficava sabendo que existia
guerra. Só lia os nomes masculinos como defensor
da pátria”.
(JESUS, 1960, p. 33).
Das três escritoras aqui citadas, talvez a maior riqueza de seus escritos seja precisamente a dissonância, a voz destoante, descolonizada, suas “escrevivências”, essa escrita que emerge da própria experiência de vida, como enuncia Conceição Evaristo. O modo particular com que cada uma explora e escreve sobre os seus “multi-universos” revela essa polifonia ao mesmo tempo em que expõe as feridas provocadas pelo machismo estrutural presente na sociedade e, mais notoriamente, no cânone literário, posto que – sendo constituído predominantemente por homens, brancos e europeus -, encobre e silencia violentamente vozes femininas.
Gloria Anzaldúa, Gioconda Belli e Carolina Maria de Jesus são como frutos selvagens, não se renderam à monocultura colonial, essa produção tipicamente extrativista que degrada a terra, suga suas riquezas e enfraquece suas raízes. Estas mulheres são como uma exuberante floresta que segue de pé, resistindo à ameaça da motosserra, da retroescavadeira e do extrativismo violento desde a invasão. Sua escrita é tão plural quanto a diversidade de nossas terras e povos, não podendo ser diferente a(s) sua(s) literatura(s). Dito isto, talvez o tal catedrático que encontrei na universidade tenha razão, pois nossa literatura resiste em não sucumbir ao universal hegemônico. Uma floresta inteira jamais caberá no cercado epistêmico-extrativista de instituições herdeiras do pensamento colonial, ela seguirá rompendo porteiras e arame farpado, ainda que isso fira. As Abya Yala são muitas! Que seu ventre permaneça aberto, mas como nas cerimônias tradicionais à Pachamama: como boca que se nutre dos frutos desta terra, ventre que cria e se renova; e nunca mais como uma ferida sangrenta de morte. Cuidemos de nossos ventres, nossa Pachamama! Cuidemos de nossa Abya Yala! Vida longa às mulheres e à nossa literatura pluriversal!
A autora
Samara Ribeiro é uma mulher indígena em processo de retomada de sua ancestralidade Kariri-CE. É poeta, escritora, pesquisadora, licenciada em Psicologia e em Filosofia, e pós-graduada em Psicologia Social e Comunitária, com ênfase em identidades indígenas. Atualmente vive em Lisboa onde está a concluir o mestrado em Psicologia Clínica.
Referências
ANZALDÚA, Gloria. Borderlands/La Frontera: The new mestiza. 4 th edition. San Francisco: Aunt Lute Books, 2012.
BELLI, Gioconda. La mujer habitada. Buenos Aires: Emecé editores, 1996.
JESUS, Carolina Maria de. Quarto de Despejo – Diário de uma Favelada. São Paulo: Francisco Alves, 1960.
ONU, Mulheres Brasil. Diretrizes Nacionais para Investigar, Processar e Julgar com perspectiva de Gênero as Mortes Violentas de Mulheres – Feminicídios. Brasília: ONU Mulheres, 2016
PAREDES, Julieta. Hilando fino, desde el Feminismo Comunitario. La Paz: Mujeres Creando Comunidad, 2010.
[1] Abya Yala na língua do povo Kuna significa “Terra madura”, “Terra Viva” ou “Terra em florescimento”. Esse termo vem sendo usado como uma autodesignação dos povos originários do continente como contraponto a América.
[2] Um huipil é um vestido ou blusa usado por mulheres de povos nativos em países como México, Guatemala, Honduras e El Salvador. De origem pré-hispânica, esta roupa que se destaca pelos seus ornamentos coloridos faz parte das tradições indígenas e continua a ser usada até hoje.
[3] No Texas, Novo México, Arizona e Califórnia têm variações regionais.
[4] Expressão adjetiva para tratar de cultura, comida e variante linguística originadas no Texas, fronteira com o México.
[5] Língua pertencente à família uto-asteca, usada pelo povo nahuatl e falada no território atualmente correspondente à região central do México desde pelo menos o século VII.
[6] Tradução livre: “Eu não mais me envergonharei de existir. Eu terei minha voz: Indígena, Espanhola, branca. Eu terei minha voz de serpente – minha voz feminina, minha voz sexual, minha voz de poeta. Eu romperei a tradição do silêncio”.
[7] Fragmento do poema “Consejos para una mujer fuerte”, retirado de sua obra “La mujer habitada”(1996). Tradução livre: Se és uma mulher forte/ protege-te com palavras e árvores / e invoca a memória de mulheres antigas /Faça saber que és um campo magnético / em direção à qual os pregos enferrujados uivarão / e a ferrugem mortal de todos os naufrágios / Ampara-te, mas te ampara primeiro / Toma distância / Constrói-te. Cuida-te / Valoriza o teu poder / Defenda-o / Faça isso por ti / Peço-te isso em nome de todas nós.
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