Ensaio – Por que estamos “sem referências” sobre literatura indígena?, por Ellen Lima
É possível ouvir, com muita frequência, a seguinte afirmativa quando o assunto se relaciona a teoria, arte e literatura indígena: “não há referências”. É curioso que essa afirmação seja feita no momento que mais estamos conectados às redes, no tempo em que mais temos facilidade de acesso a informações, perfis, comunicadores e até mesmo autores e artistas indígenas. Mas então, o que estamos fazendo, ou melhor, o que nos falta fazer para finalmente encontrarmos essas referências?
Primeiramente, por questões de autoria, ancestralidade e especificidade que se espera encontrar empregada numa escrita indígena é importante que o leitor tenha em mente uma diferença básica quando se trata de referências literárias: existe a literatura indígena e a literatura indianista. A diferença fundamental entre elas é que as obras indianistas, por mais bem intencionadas que se proponham ser (embora nossa mais conhecida referência histórica, o romantismo, seja precisamente o maior exemplo dos problemas, causados por idealizações e essencialismo), são obras que escrevem a respeito de, criam ideias sobre, descrevem o “outro”, mesmo quando essas se dão a partir de uma experiência ou vivência com determinado povo ou território. Dessa forma, a literatura indianista não parte de um princípio interno ou orgânico e geralmente, apesar do aparente ou efetivo conhecimento a respeito do povo sobre o qual o autor tenha escrito, tem raízes e estruturas narrativas profundamente essencialistas e etnocêntricas. O famoso romance Iracema, de José de Alencar, é um exemplo bastante emblemático de literatura indianista.
Por outro lado, a literatura indígena compreende necessariamente um corpo que afirma ou reivindica essa identidade e ancestralidade – o que não significa necessariamente que autores indígenas escrevam exclusivamente sobre assuntos indígenas, esse, porém, assunto para um próximo texto – e é produzida a partir do lugar destes autores no mundo e suas experiências, ou seja, de um princípio interno, inerente à sua identidade. Segundo a teórica indígena Graça Graúna:
(…) a literatura escrita pelos povos indígenas no Brasil pede que se leiam as várias faces de sua transversalidade, a começar pela estreita relação que mantém com a literatura de tradição oral, com a história de outras nações excluídas (as nações africanas, por exemplo), com a mescla cultural e outros aspectos fronteiriços que se manifestam na literatura estrangeira e, acentuadamente, no cenário da literatura nacional. (Graúna, 2013, p. 190)
De acordo também com o escritor e teórico Daniel Munduruku, a literatura indígena é, entre outras coisas, uma forma de preservação da própria cultura e um meio de fazer denúncias sobre situações relativas às invasões do seu território ou à destruição da natureza. Dada essa exposição, acredito que possa estar mais claro para o leitor a distinção entre esses conceitos opostos, e a importância e necessidade de buscar cada vez mais por autores indígenas.
Dito isso, voltemos então ao “problema” da falta de referências. Alguns autores indígenas já são amplamente conhecidos, e é possível que o leitor reconheça pelo menos um desses nomes: Ailton Krenak, Daniel Munduruku e Davi Kopenawa Yanomami. Mas o leitor seria capaz de citar mais um? Esses autores veteranos, por seu tempo e ativismo na causa indígena, alcançaram espaços de relevância e, de alguma forma, já se encontram no cânone literário. No entanto, somos 305 povos, com línguas, diversidade e culturas específicas. Investir na diversidade de escritores indígenas é uma oportunidade ímpar de conhecer novas subjetividades, territórios, questões, problemáticas, cultura e cosmologias desses povos. Além disso, existem dezenas de autoras indígenas mulheres, LGBTQIA+, autores indígenas aldeados e não aldeados… Enfim, uma riquíssima infinidade de possibilidades literárias. E como chegamos a elas?
A primeira de todas, para o leitor que não tem contas em mídias sociais, é a Livraria Maracá, uma livraria on-line especializada em literatura indígena produzida no Brasil. Lá o leitor encontrará autores como Churiah Puri, Auritha Tabajara, Cristino Wapichana, Denizia Kawany Kariri Xocó Fulkaxó, Edson Kayapo, Edson Krenak, Eliane Potiguara, Ely Macuxi, Julie Dorrico, Kaká Werá Jekupé, Kamuu Dan Wapichana, Marcia Wayna Kambeba, entre outros.
Apesar disso, nem todos os autores indígenas estão no catálogo dessa editora. Para além da literatura, é possível encontrar nas redes sociais músicos, artistas e acadêmicos indígenas, por isso, me proponho a indicar alguns perfis.
No Instagram, é possível encontrar no perfil Visibilidade Indígena (@visibilidadeindigena) uma centena de referências sobre arte e cultura indígenas; a partir disso, o leitor pode escolher quais referências lhe são mais interessantes para seguir e acompanhar o trabalho desses artistas. Além desse perfil, a comunicadora Julie Dorrico (@juliedorrico) é uma grande divulgadora de obras literárias e eventos indígenas, faz muitas lives com autores, escritores e artistas – que ficam disponíveis no perfil dela e são uma excelente forma de conhecer e entrar em contato com novas referências. Por último, e não por fim, o GEMTI (Grupo de Estudo em Memória e Teoria Indígena) é constituído por administradores indígenas dos perfis de @literaturaindígena no Instagram, que buscam divulgar a literatura indígena em seus respectivos estados de origem (já são 18 perfis, que representam 14 estados) e um perfil internacional, o literatura indígena Portugal @literaturaindigenaPT (perfil administrado por esta autora, poeta e também divulgadora de arte e literatura indígena). Há ainda o perfil Leia Mulheres Indígenas: @leiamulheresindigenas, destinado a divulgar obras e autoras indígenas – o projeto conta com os perfis: Literatura Indígena Amapá (AP): @literaturaindigenaap; Literatura Indígena Amazonas (AM): @literaturaindigenaam; Literatura Indígena Bahia (BA): @literaturaindigenabahia; Literatura Indígena Brasil (RJ): @literaturaindigenabrasil; Literatura Indígena Ceará (CE): @literaturaindigenaceara; Literatura Indígena Maranhão (MA): @literaturaindigenama; Literatura Indígena Minas Gerais (MG): @literaturaindigenaminasgerais; Literatura Indígena Pará (PA): @literaturaindigenapa; Literatura Indígena Paraíba (PB): @literaturaindigenapb; Literatura Indígena Paraná (PR): @literaturaindigenapr; Literatura Indígena Pernambuco (PE): @literaturaindigenape; Literatura Indígena RJ: @literaturaindigenarj; Literatura Indígena Roraima (RR): @literaturaindigenarr; Literatura Indígena São Paulo (SP): @spliteraturaindigena e Literatura Indígena YouTube: @literaturaindigenayoutube (há ainda um canal no youtube, deste perfil, no qual é possível assistir a lives e entrevistas).
Ou seja, existe um número considerável de grupos que divulgam referências e diversidade indígena na internet. Por isso, precisamos ficar atentos ao algoritmo. Plataformas como o Instagram, por exemplo, utilizam vários algoritmos classificadores. De uma forma bastante generalista, o que você curte, comenta, segue ou reposta, é classificado como conteúdo que você considera mais relevante. Então, se o leitor quer cada vez mais referências, é importante demonstrar para o algoritmo o que é relevante para você. Quanto mais diverso for o seu feed e quanto mais você interage com essa diversidade, mais diversidade e referências chegam até você.
É importante que descolonizemos também o que nos propomos consumir. E aqui termino com uma pergunta/provocação que pode te ajudar, de imediato, a trazer aquelas referências que a princípio dizíamos não ter: quantos autores, artistas, músicos ou comunicadores indígenas você conhece, segue, lê?
Referências:
GRAÙNA, Graça. Contrapontos da Literatura Indígena contemporânea no Brasil. Belo Horizonte: Mazza, 2013.
MUNDURUKU, Daniel. A escrita foi um instrumento importante para que uma nova visão sobre os indígenas fosse despertada na sociedade brasileira. Pré-Univesp – No. 30 2013 – Povos indígenas – Abril de 2013. Disponível em: http://www.univesp.ensinosuperior.sp.gov.br/preunivesp/4817/povos-ind-genas-no-brasil-e-a- sua-literatura.html.
Ellen Lima (@aellenlima) é indígena de origem Wassu Cocal (AL), escritora, poeta e pesquisadora em arte, culturas e literaturas indígenas. Atualmente cursa o doutoramento em Modernidades Comparadas: Literaturas, Artes e Culturas na Universidade do Minho (Portugal).
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