Ensaio – Infância, alguém disse, por Renata Belmonte
Infância, alguém disse
Renata Belmonte
Uma fotografia, dessas antigas. Um homem calvo, magro, expressão séria, desconfiada. Um homem que não sorri. Ao menos, abertamente. Talvez por timidez, talvez porque isso, naquele tempo, era o que se esperava dos homens. Ao seu lado, curiosamente, algo em contrário. Uma menina, num vestido branco, cabelos presos, laços de fita no penteado, nos braços, creio, um gato. Ela sorri com graça, suponho que para a mãe, a autora do retrato. Sim, os personagens desta cena, de antemão, já sei, são pai e filha. Mas quem mesmo liga para as relíquias dos outros, para foto velha de gente desconhecida? São tantas imagens diárias, vivemos num bombardeio de informações, milhões de urgência que se põem com o sol de cada dia! Por que perder tempo com rostos que nada nos dizem? “Ficava orgulhoso por não deixar transparecer nada, sentimentos guardados bem no fundo do bolso”[1], Annie Ernaux, a criança da fotografia, é quem nos diz. Sim, não leio as páginas do seu O lugar sem ser invadida por uma dor terna, dessas que nos deixam mais sensíveis. Sim, uma dor terna, bonita, mas ainda assim, dor, pois é algo da mesma substância e, nestas circunstâncias, adjetivos costumam ser acessórios, muitas vezes, meros acompanhantes, assim como sobrenomes. Em uma passagem, Annie, tratando da indiferença com a qual seu marido tratava seus pais, questiona: “De que maneira um homem nascido em uma família burguesa, com formação universitária, e que manejava bem o uso da ironia, poderia se divertir na companhia de pessoas simples?[2] A gentileza de meu pai, que meu marido reconhecia, jamais poderia compensar, de seu ponto de vista, uma falta essencial: uma conversa inteligente.”
Em Retorno a Reims, Didier Eribon destaca: “Tudo de que fomos arrancados ou que gostaríamos de arrancar continua a ser parte integrante do que somos. Sem dúvidas as palavras da sociologia seriam mais convenientes do que as da psicanálise para descrever o que as metáforas do luto e da melancolia permitem evocar em termos simples, mesmo que inadequados e enganosos: os traços do que fomos na infância, o modo como fomos socializados, persistem mesmo quando as condições em que vivemos na idade adulta mudam, mesmo quando desejamos nos distanciar deste passado, e, como consequência, o retorno ao meio do qual viemos — e do qual saímos, em todos os sentidos do termo – é sempre um retorno para si, reencontros com um eu tanto conservado quanto negado.”[3]
De minha parte, já que possuo certeza de que me refugio em aspas alheias quando não me sinto capaz de enunciar algo importante, faço um esforço, tento este parágrafo, busco, ao menos, algumas breves palavras próprias para não fazer feio, para me apresentar corajosa, justificar minha autoria. Então, se preciso falar sobre a minha infância, esta minha ilha, tenho que voltar ao imenso incômodo de pertencer a dois reinos um tanto inconciliáveis, preciso relembrar da sensação de clandestinidade que sempre me tomava quando eu abria um livro. Não posso esquecer, evitar minha busca por portas de saída, já que desejava habitar universos distantes demais daquela existência sitiada por mares, daquele espaço tão restrito que insistiam em chamar de minha vida. Por que, simplesmente, eu não era dócil, pacata e prática como os que me rodeavam? Por que eu precisava de mais do que tinha? Por que eu sentia tanto tédio, tanta raiva? Por que me pareciam tão desinteressantes as pessoas com as quais eu convivia? Por que eu ansiava por travessias espetaculares, ao mesmo tempo, que as temia? Como lidar com a sensação, com o terrível medo de se saber um fruto tão diferente da árvore? Como explicar que jamais aceitaria qualquer limitação devido a minha condição de menina? Não, eu não serviria a homem algum, ora, eles que se levantassem e fizessem seus próprios pratos!
Mas, afinal, como crescer, ocupar novos espaços? Como deixar claro para toda essa gente que minha escrita também é trabalho? Se os livros pareciam minha salvação, um registro, indício de que algo melhor e mais profundo existia, eu também sabia de seus riscos, pois a cada página ultrapassada, eles me levavam para lugares muito próximos de mim. E como continuar amando e sendo amada, sabendo que grande parte do que eu me tornava era repudiado pelas minhas próprias estruturas básicas, por aqueles por quem eu era formada? Como me livrar daquela subserviência esperada, das convicções tão profundamente arraigadas, sem desprezar também todo afeto que sempre esteve envolvido?
Infância, alguém disse. Uma ilha, eu repito.
Renata Belmonte é autora de quatro livros: Mundos de uma noite só (Faria e Silva, 2020), Femininamente (Prêmio Braskem de Literatura, 2003), O que não pode ser (Prêmio Arte e Cultura Banco Capital, 2006) e Vestígios da Senhorita B (P55, 2009). Doutora em Direito pela USP e Mestre pela Fundação Getúlio Vargas, ela também atua como advogada.
[1] ERNAUX, Annie. O lugar. São Paulo: Fósforo, 2021. P. 60.
[2] ERNAUX, Annie. O lugar. São Paulo: Fósforo, 2021. P. 58.
[3] ERIBON, Didier. Retorno a Reims. Belo Horizonte: Âyiné, 2000. P. 14,15.
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