(Nara Barreto) Um olhar sobre a infância em “República Luminosa”
Um olhar sobre a infância em “República Luminosa”
“Que as coisas ‘continuem como antes’, eis a catástrofe” – Walter Benjamin
Não terei filhos. Muito mais do que uma decisão tomada, isso muito cedo foi uma constatação lúcida e sólida, tranquila. Gosto de crianças, mas não vejo em mim o desejo necessário para a maternidade. Não me interesso pelo assunto “infância”, em boa parte por acreditar que nada teria a ver comigo. Penso que essa pauta seria relevante apenas para pais e mães e pessoas que assumem o lugar de cuidado e formação dos pequenos. Eu não poderia estar mais equivocada. Funcionamos assim, somos especialistas em tentar fugir das nossas sombras.
Andrés Barba, autor do excelente “República Luminosa”, parece espelhar um tanto o meu dilema. No livro, as memórias do narrador nos transportam para um determinado recorte no tempo em que ele foi testemunha e cúmplice de um confronto atroz. Repentinamente, crianças aparecem numa cidadezinha interiorana e bagunçam a ordem da comunidade. Cometendo pequenos furtos e formando uma espécie de tribo, esses meninos e meninas subvertem as leis e as regras sociais, colocando em xeque a visão romanceada de uma infância pura e inofensiva. Os eventos vão escalonando e culminam num desfecho trágico que irá marcar a vida de todos.
“República Luminosa” é um romance sobre um medo ancestral. A meu ver, a infância sempre foi assustadora. As crianças representam algo que a sociedade dita “civilizada” não consegue dar conta propriamente.
Apenas a partir da Idade Moderna a infância passou a ser considerada como uma fase de vida distinta, com características e necessidades particulares. Durante esse processo, os adultos passaram a tentar encaixá-la nos mais variados moldes: do suprassumo do mal ao ser da mais completa pureza. Aqui entre nós, a ideia que tenho é que não conseguimos, até hoje, lidar com a infância de forma coerente. E esse livro é um ótimo retrato disso.
Como um amálgama de possibilidades, na infância está contido todo o devir, todas as portas potencialmente abertas e todos os caminhos inexplorados. A criança é a promessa do Eterno Retorno, com todas as probabilidades de rompimentos e transgressões.
Tudo isso parece muito bonito e muito esperançoso, não fosse pelo seguinte problema: na prática, adultos não gostam do inesperado. Temos, de forma geral, a necessidade de controlar todas contingências; tememos as transformações mais óbvias da vida, como o envelhecimento e a morte. Inventamos métodos de previsão que vão do mercado financeiro aos astros, tudo para termos a sensação reconfortante de que estamos segurando as rédeas desse cavalo selvagem e indômito que é a existência. Nos refastelamos na ilusão do poder.
As “32” de Barbas são livres. Seu poder ilimitado de criação e sua ludicidade subvertem até a linguagem. As crianças criam uma língua espontânea que tem muito mais a função do brincar com a realidade do que de domá-la, de nomeá-la. Uma língua que só tem o presente como tempo verbal. Tudo é o agora. Essa subversão causa medo na comunidade. O medo gera desprezo, o desprezo gera raiva. O que pode ser mais ameaçador para mente adulta do que essa perversão do tempo?
A criança não domesticada é tema de outras obras valiosas, algumas vezes numa versão romantizada. É o caso do simpático Gavroche, personagem do clássico “Os Miseráveis”. Victor Hugo tinha como objetivo gerar empatia no leitor, fazê-lo ver a injustiça que é o abandono de uma criança, não só pela família, mas pelo Estado. Outros clássicos, como o “O senhor das moscas”, de William Golding, e o “Capitães da Areia”, de Jorge Amado, trazem para quem lê um vislumbre da ambiguidade da experiência infantil, um assunto que ainda causa muito incômodo na nossa sociedade. Não nos sentimos confortáveis discutindo sexualidade e violência na infância, mas nem por isso essas coisas deixam de existir ou deixam de ter impacto. Muita gente acha inconcebível, por exemplo, a ideia de oferecermos educação sexual nas escolas. É minimamente curioso e fica impossível não perguntar: do que temos medo, afinal?
Lidamos com a negação da responsabilidade coletiva. Não nos consideramos responsáveis moralmente ou eticamente por crianças em situação de vulnerabilidade, que não “as nossas”. Exigimos penalidades brutais para crianças que cometem crimes e nos isentamos totalmente da responsabilidade por essa situação. Nós, adultos, construímos cidades impossíveis para a infância. Nós cerceamos suas possibilidades de vida. Moldamos a infância para atender nossos desejos perversos de lucro e poder.
Talvez o nosso medo secreto seja de que essas crianças possam, um dia, revidar.
“Assim como o Pequeno Príncipe, nós também pensávamos que nosso amor privado por nossos filhos os transfigurava, que até mesmo com os olhos vendados seríamos capazes de identificar suas vozes entre milhares de vozes infantis. O que confirmava, talvez, o contrário: que aquelas outras crianças que ocupavam pouco a pouco nossas ruas eram versões mais ou menos indistinguíveis do mesmo garoto ou garota, crianças ‘parecidas com outras cem mil crianças’. De quem não precisávamos. Que não precisavam de nós. E que, é claro, tinham de ser domesticadas.
Mas a realidade é insistente e nem sequer assim deixavam de ser crianças. Como poderíamos esquecer se era exatamente aí que começava o escândalo? Crianças. E, um belo dia, descobriu-se que roubavam. ‘Pareciam tão boazinhas!’, exclamavam alguns, mas por trás desse grito havia uma ofensa pessoal: ‘Pareciam tão bons e nos enganaram, esses pequenos hipócritas’. Eram crianças, sim, mas não como as nossas.”
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