Ensaio – Livros: ler a nós mesmos, por Marlo R. R. López
A ficção é uma mentira cheia de verdades.
– Stephen King
Acredito que todo leitor atento aos efeitos da leitura literária na sua vida pode dizer, com segurança, que os livros não são apenas acessórios ocasionais que as pessoas procuram para se distrair ou se educar: eles são, na verdade, peças fundamentais para a experimentação e compreensão dos assuntos humanos em toda a sua complexidade, a ponto de constituírem parte imprescindível de nossa identidade social. Ler é um modo especial de preparar-se para compreender; o leitor estabelece durante a leitura relações primeiramente individuais com cada objeto ou ser nomeado e narrado, ampliando essas relações mais tarde.
No limite, esse exercício pode ser comparado com o próprio ato de viver e pensar a vida. Não é por acaso que encontramos com frequência leitores capazes de afirmar categoricamente que os livros são o ar que respiram; sem eles, padeceriam, viveriam uma vida definhada, desprazerosa, desarrazoada e desconectada de uma corrente humana mais ampla. Livros são fundamentais para quem conhece e sente na pele sua potência transformadora, e, tendo em vista a característica profundamente reflexiva da literatura, é preciso defendermos seu valor humano necessário, vital, sem o qual perdemos de vista até mesmo quem somos, nossa posição em uma escala comunitária e ética.
A literatura é reflexiva porque, em primeira instância, nos faz pensar sobre nós mesmos: no que constitui o mundo em que vivemos, no que é possível fazer e viver nessa realidade e o que podemos fantasiar com o que nos é dado. Costumo dizer que a potência do contato entre um leitor e um texto literário encontra semelhança na potência da aquisição da própria linguagem: lendo, assim como aprendendo a falar, podemos estabelecer novas relações entre o mundo que nos cerca e a nossa existência concreta nesse mundo – abraçamos a vida e nos sentimos capazes de mexer com ela, de operacionalizá-la, ou, em outras palavras, nos apoderamos dela.
É com os livros de literatura que nos damos conta, às vezes pela primeira vez, que as palavras têm o poder palpável de modificar a nossa experiência cotidiana, assim como a fala, estabelecendo analogias, metáforas e “campos de experimentação” onde o real é transfigurado, repuxado, subvertido, colocado à prova das nossas necessidades mais íntimas.
Paulo Freire, o grande educador brasileiro reconhecido internacionalmente, postulou sobre esse poder da leitura de modo muito enfático. A palavra é autoritária quando aqueles que a escrevem estabelecem afirmações definitivas e conclusões fechadas, onde a criação de novos arranjos nas formas de simbolizar o mundo é impedida – e, portanto, são impedidas as formas de subjetivação. A educação pode ser autoritária nesse sentido, da palavra como obrigação, como informação esvaziada de sentido a ser memorizada e replicada acriticamente – o “texto sem contexto”. A literatura é, como não poderia deixar de ser, o contrário da palavra autoritária: trata-se da sensibilização do leitor, via reflexão, para que ele possa criar e recriar a sua história. Uma história com sentido, afinal, e amparada na experiência dos seus semelhantes.
Na literatura, por exemplo, a ficção é capaz de nos emocionar, de nos fazer criar laços com personagens verossímeis e de abrir brechas para enxergarmos injustiças no mundo. Se entramos na seara da investigação de nós mesmos mediados pelos efeitos da leitura, podemos nos perguntar: “Por que isso me emocionou? Por que esse personagem me chama a atenção? O que há nele que fala de mim? Que elementos da realidade retratada neste livro eu vislumbro aqui, agora, na minha realidade?”. Penso que os melhores livros são aqueles que, nas entrelinhas, convidam o leitor a pensar sobre como tudo aquilo que ele leu tem relação direta com o ambiente à sua volta e com a sua história de vida.
O prazer que se sente ao estabelecer essas conexões – olhando o mundo com as lentes que a literatura fornece – é conhecido entre os leitores, porque envolve inquietação, aventura, descobrimento, reconhecimento e dúvida, um carrossel de sensações que mobiliza o corpo mesmo. Como diz o escritor português António Lobo Antunes, a leitura deve ser sempre “uma leitura de travessia”, uma iniciação ao desconhecido, uma jornada na qual se pode “adoecer” mas da qual retornamos com alguma bagagem – ou seja, modificados pela palavra, capazes de estabelecer novas relações com o meio e agir a partir dessa transformação.
Durante a pesquisa que fiz em meu mestrado em Psicologia (UNIFOR), entre 2016 e 2018, entrevistei muitos leitores, a maioria com mais de setenta anos de idade. Meu objetivo era conhecer o papel que a prática da leitura assumia no seu cotidiano – como essas mulheres e esses homens, oficialmente declarados idosas e idosos, significavam a leitura no momento atual de suas vidas; o que os levou ao hábito de ler, no passado; e quais eram os benefícios que eles conseguiam enxergar como frutos dessa prática. As respostas que obtive ilustram ponto a ponto o que escrevi até aqui.
Lembro-me especialmente de uma leitora que relatou que, ao ler A guerra do fim do mundo, de Mario Vargas Llosa, vivera uma montanha-russa de sentimentos – da ira à alegria – porque passou a associar Canudos à sua pequena cidade natal do interior do Ceará, alvo de uma violenta e localizada repressão policial nos anos 1970. “Aquele livro falou comigo de um jeito especial, senti coisa que eu não achava que poderia sentir”, ela me confessou, sentada no sofá de sua sala com uma perna cruzada sobre a outra. E completou: “Aí entendi que o livro estava me abrindo, me lendo. E eu estava me lendo por causa do livro.” Recordo mais uma vez António Lobo Antunes: “Reparem como as figuras que povoam o que digo não são descritas e quase não possuem relevo: é que se trata de vocês mesmos”.
Outro participante de minha pesquisa confidenciou que, quando lê literatura, ele se sente de fato um ser humano capaz dos “mais nobres sentimentos pelo próximo”, uma sensação que por vezes o leva às lágrimas. “Eu enxergo o outro pelos livros. No fundo, eu acho que a leitura de literatura é isso, é a gente aceitar olhar para o outro, entendê-lo, e entender nosso lugar em relação aos outros. Ler é se abrir para a palavra do outro que compartilha o mundo com você. O que fazemos com isso?”.
Saí dessa entrevista em particular com a pergunta martelando a minha cabeça. A leitura de literatura abre os nossos olhos; o que fazemos com essa consciência? Ler é um exercício ético e, por tabela, político. Ler é um ato necessário para compartilharmos uma humanidade – nossa condição humana, a única coisa que temos em comum, vital porém sempre fugidia, sempre pronta a ser esquecida em prol de um individualismo destrutivo.
A eventual perspectiva nova que podemos ter da realidade da qual fazemos parte é uma consequência necessária do hábito da leitura. Ler é tomar parte na própria vida e vislumbrá-la em larga escala.
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