[Conto #3 – Blog do Pacote] Queria ser rio – por Diego Barbosa
Talvez fosse isto: tinha nome de floresta. A primeira vez que ouviu a sentença foi numa das rodas de conversa, no sítio do avô. Noitinha chegando, os parentes se reuniam ao redor da fogueira e proseavam sobre tudo e qualquer coisa. Naquele dia avizinhado à memória, falavam dos significados dos nomes. “Olhe só, Sílvia, o seu: em latim, quer dizer ‘bosque’”, explicou tio Adolfo, cujo batismo também se deu em diálogo com a natureza. Era o “lobo nobre”, “da linhagem dos distintos guerreiros”. Ele viu no dicionário. E vovó havia dito.
Mas ali, enclausurada numa das janelinhas perdidas do sétimo andar, Sílvia não se fazia selva. Aquela era apenas uma lembrança distante. O prédio onde morava ficava no centro da cidade, onde gramas e arbustos serviam apenas como decoração. Por sorte, a figueira em frente ao edifício fazia exceção à regra. Volumosa, os galhos quase a abraçar as sacadas e as nuvens, era um oásis para a visão da menina. Esgueirada no parapeito, ela observava o farfalhar da ramagem e pensava em outras vegetações. Um mundo possível de paisagens campestres. Um planeta todo verde, em que reinaria feliz com seu nome arbóreo.
Essas inquietações lhe alcançaram com maior vigor por conta de uma notícia. Deu no jornal ontem: um artista estava espalhando placas com nomes de rios e córregos canalizados no bairro. Queria que as pessoas conhecessem o epíteto das águas invisíveis da metrópole, começando por onde a movimentação de gente era mais intensa. O lugar era o mesmo em que as chuvas de outrora derramaram-se com força, deixando um rastro de morte e destruição.
Então, estava decidido: se Sílvia não podia ser mato, que fosse rio. Assim, feito uma esmerada espiã, ela não apenas saberia das informações sobre aqueles líquidos subterrâneos; por iniciativa própria, acompanhada de ninguém, descobriria outros. Talvez o mais caudaloso deles, o deveras impetuoso. Quem sabe? A pequena tinha gana de muito, de coisas longes. De novidade. Logo, não esperou tardar o dia, muito menos que rompesse o próximo alvorecer. A tarefa, tão robusta, teria que ser iniciada logo. Agora. Já.
Camuflada, vestida de cor-musgo da cabeça aos pés, pegou o elevador, acenou despedida para o porteiro do condomínio e desembestou pela rua. Mentiu para a mãe de modo a cumprir direitinho a missão. Falou que ia visitar a indefesa Acácia, sempre acometida de severa bronquite. E dormiria na casa dela, velando pelas dores da amiga. O plano, portanto, era perfeito: aproveitaria boa parte da manhã e da tarde para caçar as águas. Se preciso fosse, também adentraria a noite, a madrugada. “Não é possível que eu não consiga”, segredou a si.
A tiracolo, ia com Sílvia uma canastra – também verde. Lá dentro, bolinhas de gude revestidas de papel crepom, um caderninho de feitura artesanal e duas moedinhas de cinco centavos. Era tudo que tinha para atravessar a capital. O suficiente. O peso que se elevava deveria ser apenas o da responsabilidade do compromisso. Nenhum outro.
A cada passo, os logradouros iam revelando mais e mais dados para a miúda. Em uma esquina, havia a “Poça do Mata-gatos”; em outra, o “Córrego Jucá”. Mais adiante, o “Riacho do Passadiço”, o “Laguinho Bento Claro”, a “Lagoa das Ratazanas Escuras”. Havia uma magia e um certo repúdio. Quem gostaria de tomar banho numa poça cravejada de animais medonhos? Sílvia contorcia o rosto de nojo. Não queria nem pensar. Por outro lado, era fascinante a sensação de nadar por cima do concreto. Porque era isso que ela estava fazendo ao palmilhar a cidade: flutuando nos ocultos fluidos.
Desvencilhando-se daquelas imagens, a menina percebeu algo interessante: as placas formavam uma espécie de mapa, apontando para uma extensão de água maior que as outras anteriormente descritas. Logo, depois das quadras designadas por poças, riachos, córregos, lagos e lagoas, ela haveria de chegar aos quarteirões dos rios, na fronteira do bairro. Apressou o passo. Era lá onde queria estar.
Foi quando sem aviso, feito ladrão, as gotas começaram a descer. Tomaram o céu de repente e dispersaram as compras, as conversas, as crianças. Sílvia, não. Totalmente despreparada para a chuva, logo ficou com a roupa preguenta ao corpo, o nariz e os cabelos escorrendo. Encharcada de choro celeste. Mas resistiu e resistiu. Fez-se balneário de coragem para singrar a lama que começou a se formar nas calçadas. Seria assim que chegaria ao espaço preterido.
Não foi muito longe, porém. Em poucos minutos, as ruas ficaram totalmente inundadas e a parte da cidade que sempre aparecia nos noticiários resfolegou ainda mais em êxtase, como nunca se viu. Numa manobra assustadora, o rio submerso rompeu a crosta, atravessando o asfalto. Desalinhou tudo. Carros e ônibus devorados, lojas invadidas, realidades destroçadas, sonhos afogados.
Menos o querer de Sílvia. Esse ficou intacto. Porque a correnteza, tão feroz, de repente ergueu-se em mansa coluna d’água. Parecia encará-la no meio dos corpos inertes, boiando. Havia uma feição gentil no rosto do dilúvio que, com ímpeto maternal, avançou num enlace, como se abraçasse a garota, a beijá-la, a protegê-la.
Sílvia tinha certeza: estava se transformando em rio. De tanto aguardá-la para mudar tudo, a própria natureza havia preparado o presente. Era isso. Enrodilhada em mistério, ela, então, se permitiu fechar os diminutos olhos e se agarrou ao corredor líquido, ciente da quimera realizada. Uma pálpebra, depois a outra. A eternidade logo ali.
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Naquele céu de pouca luz, o torvelinho de sons era estranho. Imoderado após o ato, o rio correu para a mata, onde se originou. Chamava-se “Rio Floresta” – nome dado pelos índios da região, há centenas de anos, quando tudo era ninguém. Agora, dizem que o espírito de uma menina vela por aqueles que chegam ali, levados pela correnteza nas noites de tempestade.
A cidade nunca muda. Em seus becos, avolumam-se canastras, bolas de gude, cadernos artesanais, dez centavos implorados. Sob o concreto, os rios aguardam novidades.
por Diego Barbosa (@disbarbosa)
* Texto publicado conforme versão enviada pelo(a) autor(a), sem qualquer interferência ou edição do Pacote de Textos.
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