(Nara Barreto) Você tem sede de quê?
“…e o que mais temia eram as rebeliões dos espectros.”
(François Mauriac – “O deserto do amor”)
Existe uma história que marcou profundamente o imaginário da minha infância. É o conto do “Barba Azul”, que muitos de vocês devem conhecer, mesmo os mais jovens. Se não conhecem, eis um resumo:
Uma jovem tinha medo de um homem que a cortejava. Sua barba azul e seus modos brutos causavam um sentimento de aversão bem nítido. No entanto, como a corte prosseguia de forma a agradar a jovem com todos os seus gostos e prazeres, ela passou a não ver mais a barba do homem como “tão azul assim”. Acabou casando com ele, apenas para descobrir que o seu digníssimo marido guardava um segredo horripilante: dentro de um quarto, os corpos mutilados de todas as suas ex-esposas. Em algumas versões, a nova mulher escapa. Em outras, ela não tem tanta sorte.
O que me assusta nessa história (até hoje) é a facilidade com que a moça deixa de lado seus instintos mais argutos e praticamente se convence de algo que não existe. A barba do homem – talvez uma metáfora para o claro indício de periculosidade ou, minimamente, de que algo não é natural ali – nunca ficou menos azul. Mas ela se força a acreditar, tenta moldar a realidade para caber nos seus propósitos. E é claro que isso não se sustenta.
Surge, então, a pergunta inevitável: com que frequência construímos nossos próprios enganos?
Não faz muito tempo, tive a chance de ler “O deserto do amor”, do francês François Mauriac. O enredo é simples e até bem popular: um triângulo amoroso envolvendo pai, filho e uma mulher em situação de vulnerabilidade. Os dois homens presumem estar apaixonados por ela, ela presume estar apaixonada por um deles. Nenhum dos homens faz ideia do que se passa no coração do outro. Todos estão enredados em teias particulares que se resumem a uma palavra: autoengano.
A metáfora aqui é um pouco diferente da barba azul. Temos um deserto. E num deserto, quando estamos nele há muito tempo, sentimos de forma aguda nossas necessidades mais fundamentais. Quando essas necessidades não são atendidas, só nos resta o delírio, a alucinação. Vemos o que não está lá porque precisamos acreditar que está. Precisamos dessa gota de ilusão para garantir a nossa sobrevivência, o nosso próximo passo.
E assim caímos em muitas armadilhas. Bebemos água barrenta acreditando de todo coração que estamos diante de um poço de águas claras e, depois, não conseguimos entender porque adoecemos. Não conseguimos ver o que está diante de nós, mas apenas o que queremos ver. O que precisamos.
A mocinha recém-casada e os personagens de Mauriac têm algo em comum: uma sede incontrolável de encontrar um lugar de conforto. Um lugar que sirva de esconderijo para as dores ao mesmo tempo em que faz parecer que seus desejos são possíveis e válidos. Até que, como todo delírio, tudo some no ar, com o vento e a poeira. Só resta encarar a realidade, abrir a porta e ver o que (se) tem por dentro.
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