[Conto #11 – Blog do Pacote] Clube dos suicidas – Paulo Zan
Era noite de suicídio. Rafael Cortez se colocava sobre o cadafalso e arrumava a corda ao redor de seu pescoço com a serenidade de quem sabia que estava prestes a fazer a coisa certa. Ele já havia feito um discurso, cuja plateia fervorosa do clube havia aplaudido de pé, em que, além de contar um pouco da sua trajetória e dos seus percalços, o homem havia explicado como o clube dos suicidas fora importante em sua formação enquanto pessoa. Ele se preparava para pular dentro do buraco no qual seus pés não tocariam mais o chão e onde ele se colocaria diante da face da morte, esta que ele mesmo buscava há muito conhecer e compreender, mesmo que – naturalmente – ainda pudesse ser algo distante naquele estágio de vida em que se encontrava.
Cortez era um homem jovem, por volta dos seus quarenta e poucos anos, quarenta e sete para ser mais exato, mas que havia decidido há muito tempo, antes mesmo dos vinte anos, que não se deixaria chegar à casa dos cinquenta. As boas pessoas das quais ele sabia e nas quais ele se inspirava morreram jovens, senão aos vinte e sete, idade em que Cobain, Joplin, Hendrix e tantos outros se foram, então aos quarenta e poucos, faixa em que se foi Kerouac, que morreu aos quarenta e sete, Albert Camus, que morreu com quarenta e seis anos, entre outros. Cortez seguia à risca o preceito de que “os poetas morrem mais cedo”; assim foi com Castro Alves, Fernando Pessoa – outro que se foi aos quarenta e sete. Por isso ele estava ali, pronto para se juntar aos seus possíveis “companheiros”, por mais que – nem de longe – ele não fosse tão “importante” como aqueles nos quais ele via alguma fonte de inspiração.
Cortez foi um grande poeta. “Foi”, assim no passado mesmo, já se podia dizer, pois o homem já estava com a corda no pescoço. Fora bastante conhecido localmente, podia-se dizer dele que estava entre os dez poetas mais importantes de seu estado, Rondônia.
Uma vez por mês os artistas de Porto Velho que eram adeptos ao “Clube dos suicidas”, se reuniam e sorteavam quem seria “a bola da vez”, quem seria o responsável por animar a chama dos outros com sua partida. Naquela noite Cortez havia sido o “sorteado”. Ele esperava por esse momento há tanto tempo, vinte anos para ser mais preciso. No clube só se podia suicidar aos vinte e sete, com alta dose de cocaína no corpo e um tiro na cabeça; ou depois dos quarenta, enforcando-se a si mesmo diante do púlpito. Tudo estava dentro da lei. Não se sabe como, mas aquela trupe de artistas decididos a ceifar a própria vida antes dos cinquenta, baseados em suas crenças mais profundas e refletidas, conseguira uma liminar na justiça que os permitia realizar cerimônias a contragosto de suas famílias.
As cerimônias ocorriam no primeiro domingo de cada mês, onde comiam, bebiam, dançavam, cantavam, contavam histórias e declamavam poemas terríveis sobre a morte e a vida. O ponto alto da noite era o sorteio, depois o discurso e a leitura de testamento pela própria pessoa que se colocaria a morrer e depois a morte em si, fosse a violenta e sangrenta, regada a cocaína e muito sangue ou a espalhafatosa e horrenda morte com o sufoco da corda no gargalo.
Eles achavam que com aquilo estavam a cultuar a musa de alguma maneira, esta que lhes havia “dado corda” ou “energia” por toda uma vida “poética”. Por isso haviam trajes especiais para servir de vestimenta, de mortalha, como se dizia.
Cortez já estava pronto, olhava com certo desespero a plateia diante de si, com um olhar rudimentar de quem transparecia certo tipo de euforia por finalmente conseguir algo pelo qual tanto ansiava. Regurgitou sua vida num sopro; um suspiro, talvez de medo? Fato era que ele parecia meio amargurado, como se estivesse cogitando “se arrepender” antes do feito, como se fosse possível antecipar algo do futuro, dado que arrependimento se tem já depois do malifeito. Bradou que não queria mais, ao que a plateia respondeu com espanto, ninguém nunca havia se arrependido de tão sublime dádiva. Ninguém antes havia repensado sobre o sentido da própria vida e concluído que não queria ser laureado com a sorte de poder suicidar-se diante de tamanha plateia artística. Cortez era o primeiro e soou demasiado poético, como se aquilo fosse uma metáfora, como se no fundo ele quisesse partir mas mesmo assim resolvesse soltar suas últimas doses de poesia antes de sua partida, por isso algumas pessoas umedeceram suas faces e dentro de alguns segundos, muitos já estavam de pé aplaudindo e gritando eufóricos pela poesia que exalava daquele último gesto de Cortez; podia-se ter certeza de que ele seria alçado ao rol de maior poeta do país. Entretanto, o semblante dele denunciava o desespero real que atingia seu espírito, Cortez estava verdadeiramente angustiado e surpreso com a reação dos seus amigos artistas, ele parecia pensar que aquela gente não o entendia, que ninguém ali sabia nada sobre a vida nem sobre a morte, nem acerca de coisa alguma, era como se ele tivesse recebido um ruflar divino de sabedoria sobre o sentido da vida, como se apartir daquele momento o suicídio já não fosse algo que significasse muito para ele; Cortez decidira viver, decidira buscar em vida sua consagração, ainda haveria muita poesia a ser escrita e dita por ele. Por isso tentava desenlaçar o nó meio afoito, com a pressa de quem queria viver.
Por um instante de vacilo, o poeta escorregou e caiu no buraco, se bateu e tentou gritar em desespero, naquele momento ele tinha medo da morte, mas permanecia no buraco de onde não conseguiria sair sozinho. Enfim, alguém da plateia se moveu para tentar ajudar o homem – como se por um lampejo de sensatez – que já não conseguia respirar, era tarde demais, quando alguém conseguiu chegar no púlpito onde o corpo do poeta pendulava, Cortez já havia dado o adeus desesperado das almas arrependidas.
Por Paulo Zan (@leiturasdopaulo)
* Texto publicado conforme versão enviada pelo(a) autor(a), sem qualquer interferência ou edição do Pacote de Textos.
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