[Conto #10 – Blog do Pacote] Rarefeito – Vanessa Cavalcante

As folhagens da árvore que cobriam a pequena e rasa piscina mantinham a temperatura da água sempre fria. Não fazia sol há um bom tempo. Nuvens cinzas flutuavam em slow-motion sob o céu e ameaçavam uma chuva que nunca vinha. Eu ficava as voltas no quintal, usando meu maiô preto que voltou a caber em mim há pouco tempo. Dedão do pé mergulhado na água suja de carcaça de galho e poeira cinza-escura. Eu queria ficar mais um tempo ali, afundando o pé lentamente até a altura do olhar da caveira colada no meu tornozelo, mas o motor do carro roncou.

     Os meninos estavam nesse Camaro 1969 azul safira com duas listras brancas sobre o capô. Eles fingiam ser pilotos e eu olhava de longe com preguiça. A essa altura já havia desistido de me divertir na viagem, só estava mesmo esperando a hora de voltar. Eles insistiram para que eu entrasse no carro e eu fiz que não com a cabeça. Melhor ficar ali mesmo onde tinha banheiro e cama, no caso de me faltar ar e tudo. Mas eles buzinaram, buzinaram até que eu entrei, com o ouvindo zumbindo. 

     Saímos de ré pela porta de madeira verde, o mais baixo estancou o carro duas vezes, aí o mais alto sentando em cima do mais baixo o expulsou do volante. Ele parecia saber o que estava fazendo, ou fingia muito bem. O caminho era de terra batida e as imagens nas bordas da estrada ficavam turvas. Dizia-se que aquela névoa chegou dois anos atrás e instalou-se por sobre tudo, como castigo por tanto pecado. Placas no alto de postes e tocos de pau recomendavam a permanecia de não mais que 1h do lado de fora, por risco de intoxicação com o ar. Tínhamos máscaras de oxigênio no banco de trás por precaução. No banco da frente o mais baixo dava socos no braço do mais alto. “Se você quiser, posso te ensinar a dirigir”, foi a oferta que me fez o mais alto. Antes que eu respondesse, o mais baixo mudou de assunto e disse que não era nada demais aquela névoa toda. Só era meio estranho pra quem não estava acostumado, mas ele até que achava bonito porque parecia um sonho. 

    Passamos por baixo de uma ponte enorme com pixo e grafite desbotado. O mais alto aumentava a velocidade enquanto o mais baixo raspava uma casca de ferida do cotovelo. Na escola nós mal nos falávamos. Tudo que eles faziam era jogar futebol com outros garotos. Mas quando a aula acabava, iam pra minha casa jogar videogame. No tapete do meu quarto ficávamos os três revezando os controles até anoitecer. “Então, o que vai ser, verdade ou desafio?”, perguntou o mais baixo, “Vê se cresce, cara”, disse o mais alto olhando para mim pelo retrovisor. “Você já viu os corais com rostos de pessoas?”, respondi que não, e o mais alto me falou que nessa época do ano, os cadáveres dos corais desprendiam-se do fundo do mar e amanheciam na areia negra da praia. Que ele já tinha visto o rosto de Gandhi, Pabblo Vittar e do pai do mais baixo, pra citar alguns. Isso atiçou minha curiosidade. O carro passou a tremer e o som dos pneus contra as rochas indicava que havíamos chegado a uma estrada de pedra. Pequenos pontos de cor saltavam sob a névoa, e como tínhamos diminuído a velocidade podíamos ver agora o cemitério de barracas de praia com paredes repletas de propagandas de bebidas que não encontramos mais no supermercado. 

     Estacionado o carro, o mais alto tirou do bolso uma pequena garrafa de alumínio achatada e deu um gole fazendo careta em seguida. O mais baixo pôs a mão na boca pra segurar o riso e eu estendi a mão pra tomar a minha cota da cachaça. “Seu pai não vai perceber?”, perguntei, no que ele me devolveu: “Meu pai é um vegetal. Não vai nem notar”. Em compartilhamento triangular esvaziamos o recipiente e descemos do carro. O cheiro do vento era diferente na praia, um dos poucos lugares onde se podia estar sem máscara. Cheiro de alga e sal. O noticiário das seis falava em milagre. Meus pés âmbares eram engolidos pela areia e diante de mim se relevam algumas formas circulares e pontudas, outras suaves. Talvez Deus estivesse nessas coisas, disse o mais alto. O mais baixo riu de novo e pegou impulso para socar o braço do mais alto. “Você tá bêbado, seu trouxa!”. Pedi que parassem, mas eles caíram rolando e destruindo as figuras no chão, molhando-se por completo com o desmanchar da espuma sobre seus corpos. Até que esbarraram em um monte coberto por areia negra. Nossas mãos varriam a areia sobre a coisa, que era gigantesca e exalava um cheiro de peixe na ponta onde havia a boca. Nunca tinha visto uma baleia de perto. Sentimos o frio da pele borrachuda, eu e o mais alto. Paramos com a vibração que o mais baixo criou ao pular sobre o bicho. Os olhos, dois caroços de carvão acetinados. O mais alto encostou as costas na baleia e mirou o céu, no que eu e o mais baixo o imitamos. Fechei os olhos e mergulhei num longo assobio, o espírito daquele bicho enorme parecia dançar em torno da gente, livre ou aprisionado, impossível calcular o efeito de nosso impacto. Fui me sentindo espremida pelos dois que, um depois o outro, repousaram as cabeças sobre meus ombros. 

     A noite caiu trazendo um aspecto rarefeito para o ar e nos conduzindo ao sono. Acordamos assustados e nos apressamos até o carro. O mais baixo no banco de trás preparando as máscaras de oxigênio, enquanto o mais alto prendia o elástico ao meu rosto. Ficamos os três ali uns minutos, ainda sonolentos, como se tivéssemos sido dopados ou envenenados. Relaxei o pescoço para trás vendo de ponta-cabeça a praia, as dunas, o voo das aves procurando refúgio na noite. Meus pés formigavam levemente e eu os balancei com a força que me restou da caminhada. O mais alto prendeu meu pé direito e começou a massagear de leve a ponta dos meus dedos pálidos e gelados. Ri com as cócegas, mas não recuei. O mais baixo tomou-me o outro pé fazendo uma massagem menos experiente. Como tinha o hábito de imitar tudo que o mais alto fazia, logo aprendeu a seguir os movimentos adequados. 

     O torpor do ar que entrava nos meus pulmões desliza por dentro, fazendo pulsar tudo que era interior em mim. Descia ao meu ventre e escorria entre as pernas uma sensação nova. Senti o avanço do mais alto, subindo suas mãos até meus joelhos, olhando de tempo em tempo para o mais baixo, como se aquilo fosse uma aula. Entreguei-me e lembrei do controle do videogame sobre o tapete, do cheiro que ficava no meu travesseiro quando o mais baixo ia embora, das fórmulas químicas no quadro por trás do professor. Abri os olhos e puxei o mais baixo para perto. Ele tirou a mascara para me beijar, enquanto o outro subia com os dedos avançando sob meu maiô. De olhos fechados, já não percebia a diferença entre um e o outro. O vapor se avolumava dentro do carro, deixando as janelas com um aspecto leitoso. De novo tontura. Uma sirene soou alertando para o toque de recolher. Encaixamos novamente nossas máscaras, nos entreolhamos silenciosamente e voltei a ficar sozinha no banco de trás.

     A única luz no caminho de volta vinha dos faróis do Camaro, penetrando o breu completo. O som das ondas colidindo nas rochas e o assobio fraco de almas nativas da praia ficavam distantes a medida que avançávamos de volta pra casa. A experiência ali nos marcaria para sempre e talvez só compreendêssemos plenamente no futuro. Algum futuro possível e distante, nessa galáxia ou em outra. 

     Carro dentro da garage, máscaras fora do rosto. Limpamos as canelas sujas de areia para entrar em casa. Levei carão por estar de maiô o dia inteiro, perambulando por aí. Na sala, minha tia aplicava hidratante nas mãos do meu tio, que só mexia os olhos e tinha a boca torta pra sempre. Os meninos entraram e subiram direto pro quarto. Minha tia gritou que eles fossem rápidos no banho por conta do racionamento e que viessem logo jantar. Suas vozes ecoaram “certo, mamãe”. Sentei-me ao lado da minha tia, peguei um pouco de creme e comecei a massagear a outra mão morta.

 

Por Vanessa Cavalcante (@vanessacafei)

* Texto publicado conforme versão enviada pelo(a) autor(a), sem qualquer interferência ou edição do Pacote de Textos.

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