[Conto #9 – Blog do Pacote] O jardim das alergias – Lina Cavalcante
Todas as mulheres de minha família se tornaram alérgicas ainda muito pequenas. Rita tinha alergia à cor, Clarinha era alérgica a nuvem, Sônia não podia chover. O entorno não era dos mais amigáveis e ainda barrava-se o feminino na porta dos dicionários. Alergia é uma rejeição da alma e era um jeito de mulher negar.
Quem começou a cultivar alergias foi Rita. Mas as outras logo mostraram interesse e virou plantação grande e variada. Deve ser coisa que pega, pelo menos em mulher. Era coceira com dúvida, espirro de saudade, inchaço na solidão. A pele se avermelhando como em afronta, na ousadia de querer sobreviver. Alergia é um jeito de lidar com o mundo. Uma linguagem. A passagem do não sou aceita para o não vou aceitar. Não posso mentir, era bonito o jardim das meninas.
As alergias por vezes eram insistentes. A de nuvem mesmo, nunca passou. Mas a maioria ia embora dando lugar a outras. As meninas foram crescendo e tiveram filhos e filhas e, então, novas meninas alérgicas. Não era genética, era herança. Passava, mas sob alguma condição (a de ser mulher). Tinha algo de escolha.
O jardim ia crescendo junto com a família, mas em proporções maiores. É que lá em casa mulher que morria virava alergia. Era comum a gente olhar para a tia velhinha e tentar adivinhar em qual das alergias a morte lhe transformaria. Nunca esqueci o dia que Clara virou nuvem. Foi perdendo a linha do seu contorno e parecia mulher feita de fumaça branca. Ela começou a virar nuvem ainda pertinho da gente, a poucos metros do chão. Depois foi subindo, subindo e quando chegou lá em cima, junto dos balões e das pipas, já podia sonhar sem coceira ou vermelhidão.
Era domingo o dia em que Sônia virou chuva. Chuva forte, musical. Ela estava no jardim, olhar meio vago, não era tão velha, mas já estava querendo morrer. Não foram todos que viram o começo. Eu estava com Zé e com a Joana, filha da Clara. Olhamos para Sônia não sei nem o porquê e, então, vimos a pingadeira. Não era como suor porque a gente via direitinho gota por gota. A pele dela ia pingando e fazia um som bonito ao tocar o chão. Foi ficando mais forte e ela subindo em gotas que depois de formadas dançavam até o chão. Era de manhã e a chuva de Sônia durou até a despedida da tarde. E depois disso, lá no alto, a Sônia já podia chorar.
Rita estava na sala com todos. Falava pouco, mas parecia bem. A morte dela a gente não conseguiu ver em detalhes. Foi rápida. Ela foi tonalizando e explodiu em algo que não sei se consigo explicar. Fragmentou-se em pedacinhos de cores que se partiam e jorravam para cima os seus pedaços de brilho. Explodiu forte e alto, vimos o colorido de longe, já viajando por aí. Certamente, depois da viagem — e nisso a gente acredita mesmo —, Rita pôde sorrir.
Por Lina Cavalcante (@lina_cavalcante)
* Texto publicado conforme versão enviada pelo(a) autor(a), sem qualquer interferência ou edição do Pacote de Textos.
Comentários