[Conto #8 – Blog do Pacote] Caixa de sapato-surpresa – Klausney Muniz

Naquele dia o menino Raimundo acordou e não deu fé da irmã Rominha. Todo mundo da vila ficou desesperado, a inventar suposições do paradeiro da menina que do nada fora engolida pela boca da noite. Raimundo passou dias no escuro e noites em claro, pegava e rasgava pedaços de papel enquanto rabiscava um projeto de retrato falado. 

Dias depois o rosto de Rominha vigiava as esquinas e açoitava o vento. 

‘’Não tem mais jeito. Ela se mandou de vez.’’

Dona Raimunda falava cada palavra como quem cata feijão por feijão. Todo mundo, inclusive a polícia, calou a esperança com um decreto de morte. Questão de dias, meses ou anos para a escuridão devolver o corpo.  Raimundo olhava pela brecha a mãe separando os vestidos, os sapatos de salto alto com cheiro de naftalina e a fita vermelha que Rominha não andava sem pendurá-la no cabelo. A velha falava em doar o guarda-roupa inteiro.

‘’Não faz isso, mainha. Não vai sobrar nada da Rominha pra gente?’’

‘’Não fale em sobras aqui, menino. Quem vive de sobra é mendigo. Sua irmã precisa descansar.’’

Quando era menor ainda, Raimundo pensava que o descanso era o tipo de cochilo que os pais tiravam depois do almoço. Com a tragédia de Rominha, aprendeu que a arrumação de morto é se trancar numa caixa de madeira e se enfiar que nem bicho debaixo da terra. O menino não queria tão cedo se enfiar que nem bicho debaixo da terra. Por enquanto, se enfiava em outras coisas – no corredor central da feira, na mata por detrás da igrejinha e na praia com areia preta e encardida do bairro. 

Em suas andanças, foi lá que reencontrou Rominha. Assim que a viu deu um grito. Não podia ser. A menina rodeava uma pilha de madeira com cabelos de fogo, mas nada ofuscava o laço vermelho que dançava sobre sua cabeça. Raimundo correu até ela, segurou pela munheca.

‘’Diacho, onde se meteu?’’

‘’Ei!’’

‘’Epa, desculpa aí.’’

Bem que a mãe disse que esse negócio de alma penada não existe, mas o moleque tomou um susto quando viu a menina sem nome vestida com os trapos de Rominha. O mesmo vestido rosa desbotado e com falha na costura. A mesma tira espessa. As mesmas sandálias. O mesmo cheio de naftalina. Mesmo que tá vendo a ‘’quase-falecida Rominha’’ – o menino usava o ‘’quase’’ para negar a declaração de morte. 

‘’O que tá fazendo com as roupas dela?’’

A garota parou de brincar nas chamas e chamou Raimundo para perto. Ele teve medo dela – o povo daquelas bandas tinha um receio danado dela. 

‘’A dona Soraia me deu. Sinto muito por vocês.’’

Ela não tinha sequer um nome. Como poderia ter sentimento?

‘’Foi mal. Mas não era pra mainha ter feito isso. Rominha vai voltar, ela vai que eu sei.’’

Uma chama tremulou alto e o fogo cuspiu um peixe esturricado, da cor de carvão. A menina deixou Raimundo confabulando sozinho e foi admirar o animalzinho de escamas. A criatura tinha o tamanho de uma caixa de fósforos e a rigidez de uma concha. 

‘’O fogo é uma das coisas mais lindas que existe. O que tem de violento, tem de misterioso.’’  

Enquanto ela falava, o menino registrava os traços de Rominha – era mesmo que tá vendo. Não pode ser, ele não estava ficando doido. Ou será que é possível ficar doido de tão doído do luto? Teve vontade de abraçar a irmã, de reclamar de novo do cheiro de naftalina no calçado e mandar colocar a peça de molho. Raimundo viu a fita entrelaçando seus dedinhos finos numa brecha de vento e quase tudo fez sentido – a irmã gostava da cor vermelha por causa da paixão pelo fogo, agora declarada.  

‘’Volta pra casa. A mãe tá com saudade. Eu tô com saudade.’’

Rominha riu da cara dele. Outra chama tremulou mais alto e o fogo escarrou uma serpente. A cobra tinha a rigidez e o tamanho de uma pedra de asfalto. 

‘’Só volto se você brincar no fogo comigo.’’

Raimundo não entendeu direito, mas cismou com a proposta. Em questão de minutos, embrenhava-se na mata alta e catava carcaças de raposas, cachorros e gatos de rua. Rominha trouxe uma sacola cheia de sapos cururus. 

‘’E agora?’’

‘’Agora a gente joga tudo na fogueira pra virar miniatura.’’

Antes da primeira morte, Rominha colecionava sapatos. Agora a danada ajuntava um punhado de pequenas mortes. Raimundo ficou preocupado: o que a irmã iria colecionar quando estivesse adulta? Rominha não vai voltar pra casa; não vai ser quem era antes porque um dia vai crescer, vai colecionar casos, vai se apaixonar, vai enfiar um anel no dedo e uma estaca no coração dele…

‘’Onde estão os seus outros sapatos?’’

‘’Entoquei ali na floresta. Venha, vamos dançar.’’

Raimundo sentiu a mão fria da menina e pelo tamanho da palma se deu conta do que o Tempo faz com quem está vivo. De repente começaram a girar que nem um relógio e o ruído repetido de um sussurro na cabeça dele. Rominha não vai voltar pra casa; não vai ser quem era antes porque um dia vai crescer, vai se apaixonar, vai enfiar um anel no dedo e uma estaca no coração dele… não vai voltar, não vai… 

Raimundo sentiu que o calor do fogo afinal não era tão assustador. Continuou girando, e não queria mais que o ponteiro do relógio girasse para a irmã. Rominha vai sim voltar pra casa, porque o lugar dela é onde o Tempo não existe, é onde o nosso amor existe… onde suas caixas de sapatos pertencem… 

Minutos depois do golpe, a última chama da fogueira tremulou feito uma centelha de vida e dela saiu um pedaço de carne humana. 

Rominha vai sim voltar pra casa. Dessa vez sem a fita vermelha no cabelo e sem os vestidos que em breve iriam virar cinzas de tamanho. 

Apesar disso Raimundo estava feliz porque agora a irmãzinha estava bem resguardada do Tempo numa caixa de sapato-surpresa. 

O fogo realmente é uma das coisas mais lindas e misteriosas que existe.

 

Por Klausney Muniz

* Texto publicado conforme versão enviada pelo(a) autor(a), sem qualquer interferência ou edição do Pacote de Textos.

Você pode gostar...

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *