[Conto #7 – Blog do Pacote] Clarice – Gabriel Lima

Quando hoje me vejo entre quatro paredes, gemendo de dor ou de prazer, enquanto ninguém ouve, dificilmente lembro de Clarice. Tremendo entre lençóis ou vendo vultos na cadência da meia-noite, insone tal qual um bicho noturno, pouco são dela tais momentos. Diria que quase nada. Minha vida roubou um punhado de fantasmas para a sordidez do destino, e eu, despido, esqueço de pensar em Clarice. Para lembrar dela, preciso voltar no tempo. Ter nas mãos de novo os dias de um passado emocional cravado em meu ser infantil. Pois não foram só os anos que a tiraram de mim. Sua carcaça foi enterrada no quintal de algum mau sentimento que hoje tenho dificuldade em resgatar. 

Mas que no fundo conheço bem.

Clarice foi faxineira em minha casa por um breve período. Muito breve período.  Naquela época, minha mãe e meu pai trabalhavam fora durante todo o dia, deixando-me sozinho até a chegada da noite. Quando se é criança, o isolamento pode ser um grande martírio. Para mim, era deleite. Os cômodos vazios, na minha ótica de ainda um pequeno ser, eram muito maiores do que são hoje. Os corredores, incrivelmente mais extensos, e cada lugar já explorado era para a imaginação fértil de infante ainda um novo lugar, novamente um novo lugar, a guardar segredos que só poderiam ser acessados dentro do isolamento, em aventuras solitárias. 

Tudo era meio enevoado naquele tempo. Quando tento lembrar, guardo imagens chapadas que se fragmentam e se dissolvem como açúcar em café: pouco se encadeiam. E carregam consigo apenas a força de uma lembrança sem sentido, uma sensação que sente por si só, sem pedir auxílio à razão ou ao bom senso. Eu mesmo não sei da veracidade das coisas que vivi. Tudo é tão etéreo como um sonho, como se a vida fosse um constante despertar, e a infância, os sonhos se dissolvendo, se amargando, se acinzentando. Por isso, peço perdão pelas descrições. Acho que nada era tão real quanto faço parecer.

Clarice vinha lenta como um fantasma. Era mesmo muito silenciosa. Não só nos passos, mas também na voz: falava pouco. Seu tempo lá em casa, muitos anos depois me confirmou mamãe, não passaram de uns dois meses. Eu mal contava seis anos de idade.  Ela, talvez mais velha do que minha mãe. Ou não. Mas seu semblante era envelhecido. Entre as rugas que a marcavam, parecia haver ressentimento. Nunca sorria. Tinha nos longos e desarrumados cabelos um cheiro de cigarro e suor eternos. Tinha um longo nariz. Era tão magra que a roupa lhe marcava as costelas. Quando comia, era possível notar a ausência de dois dentes da frente. Para os padrões, não era bela. E eu, já embebido, mesmo sem saber, dos preceitos burgueses de meus pais e avós, via feiura em Clarice. Ela não parecia se importar.

Eu a seguia pelos cantos da casa. Na inocência de criança, pensava não ser notado quando tentava silenciar meus passos, colados aos seus calcanhares. Ela fingia não notar. Calada permanecia, enquanto engomava longas camisas sociais, enquanto lavava, nas ásperas mãos, colchas de cama e lençóis e fronhas. 

Ainda assim, a tinha como uma amiga. Clarice era um cômodo inexplorado, uma floresta serpenteando por entre meus dias que clamavam meu ímpeto de aventura. E como nos desenhos animados que eu assistia, os capítulos mais emocionantes vinham justamente das histórias mais misteriosas e secretas. Como se, mesmo com pouca idade, eu já notasse que o mundo era um lugar repleto de silêncios velados e segredos misteriosos. Uma ilha do tesouro. Também em silêncio, juntava meus carrinhos de madeira e os levava para a barra do vestido amassado e úmido de Clarice, brincando e imaginando uma certa cumplicidade entre nós. Enquanto se desfiavam as horas.

No final da tarde após concluir os afazeres, ela se sentava na mesinha da varanda, ao redor das flores que desabrochavam na primavera. Lírios, rosas, orquídeas, begônias. Em uma paleta colorida de flores, sentava-se em uma bonita cadeira e esticava as pernas em outra. Tomava lentamente uma longa xícara do café que havia passado enquanto fumava um cigarro fedorento. Suspirava. Escondido (ou ao menos imaginando estar) eu observava aquele momento com um misto de estranhamento e contemplação. Meu eu criança não via, mas hoje imagino uma pintura impressionista, com um elemento expressionista ao centro. Sua silhueta destoava de tudo. Ainda assim, suas nuances transpassavam as próprias fronteiras. Como se a fumaça do cigarro fosse a extensão do seu corpo, a se expandir pelo ambiente. A tornar-se entidade. A impregnar o mundo. 

O pote de ouro no fim do arco-íris não era a perfeição. Os desenhos animados, as revistinhas e os livros infantis tinham ensinado errado. Caminhando pelo jardim, atravessando capins, sebes, trepadeiras e belas samambaias, deparava-me, ao fim, com Clarice, fumando. Nada era perfeito. Meu coração acelerava e minhas mãos suavam. Era inteiramente estranha a mim. O oposto do meu mundo. O lado de fora do meu mundo, com uma espontaneidade que parecia não me pertencer por completo. Um tanto quanto proibida. Do outro lado do arco-íris, havia agonia.

Assim os dias se seguiram por um tempo. Assim, nesse acordo velado de poucas palavras e poucos olhares. Nos carinhos meio inexistentes entre uma refeição e outra, no preparo da minha merenda, no auxílio com o dever de casa. Clarice a me alimentar, me instruir e me banhar. De baixo eu a via. Tão grande Clarice. De olhos fundos e boca acinzentada pelo tabaco. A me higienizar com seus dedos finos e compridos. Com sua amargura. Clarice.

Houve um dia como qualquer outro. Eu voltei do colégio, tomei banho, almocei e me deitei, após comer, para um cochilo da tarde. Clarice assistia televisão: acho que eram as fofocas sobre os famosos. Lembro de ter tido um sono agitado. Perseguido por monstros, num prenúncio profético do que viria a acontecer. Acordei angustiado, mas contive o choro. Não queria que Clarice me ouvisse chorar. Sua rigidez desconfortava a minha infantil fragilidade.

Era final de tarde. Me levantei. Fui devagar até Clarice, como costumeiramente fazia, a observá-la pela brecha das venezianas. Estava com um vestido branco encardido. Mesmo café, mesma xícara. Mas outro olhar. Ainda que suas feições não mudassem, todo o mundo se estremecia. E para a imaginação fértil de uma criança, a aura exterior que emanava dela parecia mais escura. Um tanto fúnebre. Gemi de medo. Naquele dia, ela não fingiu não me notar. Olhou-me diretamente, como raramente o fazia, em quaisquer ocasiões. Pela brecha da janela, acertou-me tão forte que me arrepiou toda a espinha. E pela primeira vez, desde que conheci Clarice, a vi sorrindo. 

Ela disse:

— Ande cá, chuchu.

Ande cá, chuchu. Com a voz mais mórbida que eu conhecia. Rouca voz. Não conhecia muitas vozes ainda, mas cada uma era guardada na minha caixinha de vozes, de arquétipos e formas que construíam aos poucos o meu serzinho. Eu tinha medo daquela voz. Poucas eram as vezes que se dirigia a mim, e quando o fazia era para coisas rotineiras, como banho, comida e dever. Não havia ali nenhuma dessas coisas. Ainda que não fosse verbalizado, tinha algo diferente naquele jeito de falar. E o sorriso, que sempre me significou felicidade, ganhou a mais funesta das efígies: um escárnio, um sarcasmo, um deboche. Uma malícia. Eu não compreendia nada daquilo. Tais percepções me vêm depois de adulto. Naquele quando, travei batalhas internas e não consegui significar o que sentia. Era por completo assombroso. E o meu medo e covardia quase não me permitiram sair do canto.

Até que ouvi mais uma vez:

— Anda. 

O mesmo medo que me paralisou me obrigou a caminhar, por medo de ficar parado. Fui até o jardim. A luz do sol alaranjada pelo entardecer atravessava a grossa copa da mangueira em finos feixes que recaíam sobre as pernas finas de Clarice. Meu caminhar parecia em câmera lenta. Como num sonho, as distâncias formavam ilusões de ótica até o meu destino. A mesa debaixo da árvore estava adornada com um longo pano branco que cobria até o final de suas pernas. Como um vestido. Como o vestido de Clarice. 

Quando cheguei, ela estava de pé. Já não fumava cigarro nem bebia café preto. Observava-me, como um gigantesco vulto. Espectral. Sorria, mostrando os dentes. Os olhos, dois buracos negros fundos e hipnotizantes. 

— Mais perto — disse ela. 

Aproximei-me à contragosto. Olhava-a de baixo para cima. Seus cabelos desgrenhados alcançavam o firmamento. Sua saia resvalava em minha testa. Eu podia sentir o cheiro de suor, cigarro e café como se fossem meus. Passou lentamente os dedos cadavéricos entre meus cachos enquanto me olhava.

— Vem.

Dizendo isso, abaixou-se perto da mesa e lentamente levantou o pano branco até a altura do tampo. Depois, agachada, arrastou-se para debaixo da mesa, descendo o pano em seguida, tornando-se completamente invisível. 

Ainda que me esforce, não consigo encontrar momento mais marcante em minha vida infantil. Mas, por muitos anos, esqueci completamente dos fatos que se sucederam após Clarice ter entrado para debaixo da mesa. Na verdade, ainda desconfio da veracidade dos meus pensamentos. Se, numa tarde amena de primavera, teria Clarice se escondido, como em uma brincadeira misteriosa, a me chamar para que fizesse o mesmo. Jamais essa lembrança me veio como um gatilho, uma epifania catártica a me colocar em prantos. Nunca. Pelo contrário, Clarice foi apagada por completo durante muito tempo, e só voltou à conta-gotas, em doses homeopáticas de esclarecimento. Talvez pelo peso das lembranças, só percebi que a havia revisitado quando já acontecera. Meu peito dói. Meus olhos se arregalam de medo. E, como o efeito da erosão marítima sobre as rochas costeiras, sinto os dedos de Clarice a me acariciarem os cabelos. Lentamente. Vindo a mim como um fantasma que vem de longe. Muito longe. 

Hoje percebo que pouco importam as concretudes e a legitimidade das minhas recordações, se são memórias fragmentadas de um passado etéreo ou reminiscências oníricas de uma narrativa que compus enquanto me formava gente. No fundo, não há escolha: Clarice está em mim. Clarice sou eu. Todos os meus pesadelos são filhos de Clarice. E se hoje me falta um sorriso no rosto, foi por ter atendido ao chamado. Clarice de pé, ao meu lado, ou embaixo da mesa. Eu me calo. E vou. O caminho de volta do arco-íris jaz desfeito.

Entre quatro paredes, gemendo de dor ou de prazer, enquanto ninguém me ouve, ou acordando encharcado de horríveis pesadelos, não penso em Clarice. Seu sorriso sem dentes ficou naquela outra camada, a camada anterior, sem conseguir atravessar o véu que demarca os olhos abertos. Em meus sonhos, junto da criança medrosa de outros dias. 

Embaixo da mesa, a origem do mundo.

 

PorGabriel Lima

* Texto publicado conforme versão enviada pelo(a) autor(a), sem qualquer interferência ou edição do Pacote de Textos.

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