[Conto #6 – Blog do Pacote] Os rostos se assemelham – Francisco Romário Nunes
Às cinco e meia levantou-se. Confuso como se tivesse sido rebentado de um casulo e pela primeira vez se deparasse com a luz. O som do alarme ainda ecoava nos ouvidos. Tateou a mesinha de cama em busca dos óculos e pôde caminhar até o banheiro para fazer as primeiras ações do dia, ordens de um corpo de trinta e poucos anos. Vinte minutos depois estava sentado à mesa da cozinha tomando café com torradas. Esse era o ritual constante desde que começou a trabalhar em um escritório de contabilidades e enfiou-se num apartamento sozinho.
Desceu as escadas. Os passos eram largos e às vezes tinha a impressão de que alguém lhe empurrava as costas à medida que descia com mais pressa. Ao entrar no carro não eram raros os momentos em que se perguntava como havia chegado até ali. Não se lembrava de nada que havia feito antes, se tinha escovado os dentes, amarrado os sapatos, apagado as luzes, trancado a porta. Mas não podia dar-se o luxo de verificar e subir as escadas novamente. Ninguém iria empurrar as suas costas na subida.
As ruas já eram familiares há alguns anos. Sempre o mesmo caminho. Os mesmos semáforos. As batidas do coração seguiam o ritmo da cidade, ora frenéticas, ora mais calmas. Mais um acidente nesse cruzamento. Quando vão consertar esse maldito buraco? A sinfonia dos motores, da gente correndo pra lá e pra cá, das buzinas que parecem lâminas nos ouvidos, freios alucinados, sirenes que nos entorpecem, estrondo de algum avião partindo, as vozes da cidade, o mundo de Deus.
Parou no último semáforo, luzes vermelhas, pessoas atravessando a faixa, olhares profundos e retos. Quem são essas pessoas? Seus amores? Suas dores? O vermelho invadiu sua retina. Sentiu uma forte dor na cabeça, uma martelada, que estremeceu todo o seu corpo. Dirigiu até estacionar o carro ao lado de uma praça poucos metros depois. Abriu a porta e saiu. Caminhou estranhamente, tateando o tempo. Uma figura torta em meio aquele espaço vazio de cores.
Dali o homem seguiu até um ponto central da praça, ao lado de mendigos que ainda estavam cobertos por papelão, imersos nos seus sonhos de pedras. O mundo girava. Sua vista se apagava aos poucos. Na memória saltava imagens do avô e sua casa repleta de figuras de barro moldadas a mão. Antes que seu corpo perdesse os movimentos, lembrou-se que o avô havia lhe entregado um embrulho como presente de aniversário. Nunca fora aberto.
Então, naquele lugar, o homem foi tomando outra forma. As pernas já eram pesadas demais, os braços paralisados tocando a cabeça, os dentes trincados, o corpo enrijecido. E assim transformou-se em estátua, ornamento urbano, sem nome e sem voz. Uma história desconhecida.
Na gaveta do quarto, dentro do embrulho, um boneco de barro. Os rostos se assemelham. A face do boneco era a mesma da estátua que jaz na praça sem identidade, onde os pombos arrulham em conversas misteriosas, num idioma alienígena. E os mendigos agora encostam suas cabeças sob os pés da negra escultura, mas os sonhos ainda são os mesmos.
por Francisco Romário Nunes
* Texto publicado conforme versão enviada pelo(a) autor(a), sem qualquer interferência ou edição do Pacote de Textos.
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