[Conto #2 – Blog do Pacote] Ele não terá um futuro como o meu – por Carina Marqui Pereira
Rita acordou de madrugada, como sempre fazia desde menina, para cumprir a sua sina. Mulher aguerrida, cabocla, seguiu o destino de outras gerações, trocando as bonecas de sabugo de milho por caranguejos. As visitas perguntavam o que Rita queria ser quando crescesse e ela, sem titubear, respondia prontamente: “catadora de caranguejo”. Fora-lhe roubada a infância e subtraída a juventude. Sentia, desde cedo, o peso nas costas de quem ajuda o sustento da casa.
Saía com sua canoinha, sua roupa rasgada, luvas, botas… Então, emaranhava-se naquele labirinto de raízes de árvores e lama, e lá permanecia durante as próximas seis horas. Mesmo exausta e incomodada com as picadas de borrachudos e mal cheiro, permanecia firme. Quando se vive na lama e da lama, ela endurece as mãos e até mesmo o coração, aquela sujeira torna-se uma nódoa nas roupas e no brio de qualquer mãe.
Depois da longa jornada para garantir seu sustento apanhando o crustáceo, a nortista entregava várias dúzias ao seu atravessador, para garantir no fim do mês um troco de quinhentos reais ou até menos naqueles meses nos quais os caranguejos estavam em período de reprodução e a cata era proibida. Mãe solteira, há muito havia tomado uma resolução: seu filho não teria um futuro como o dela, e quem olhasse para as demais casas do vilarejo perceberia a diferença entre a casa de Rita e os demais casebres; uma casa pequena, mas mobiliada e limpa. Seu filho acordava, brincava e á tarde ia para a escola, ficando sempre aos cuidados de uma avó zelosa. A mulher proibia, terminantemente, que o FILHO ÚNICO, se aproximasse do manguezal. Numa localidade onde um menino tinha apenas duas opções ( ou entrava para o submundo das drogas ou trabalhava como pescador), a mãe também fazia redes e tarrafas para completar a renda familiar e assim, nada faltar a seu pequeno.
Num dia de sábado, a criança brincava no terreiro quando avistara um grupo de meninos pescadores. Diante de outras crianças, sentia-se diferente, um patinho feio, inapropriado, de certa forma. O garoto tinha muita curiosidade em conhecer o trabalho da mãe e um fascínio por caranguejos, queria observá-los mais de perto. Desta feita, aproveitou-se de que a avó estava distraída com as tarefas domésticas e partiu atrás do bando de catadores mirins. Lá chegando, respeitando os mistérios das águas lodosas e com medo de ficar atolado, permaneceu na canoa observando a destreza com a qual os moleques retiravam os caranguejos com suas minúsculas mãos de luvas rasgadas.
Terminada a faina, e contente, despediu-se dos trabalhadores e resolveu ir até o rio próximo com um amigo do grupo. A avó já estava preocupada com o seu sumiço.
Bota a mão na lama, Rita. Retira o caranguejo da toca, coloca-o no cesto de buriti.
Sabe-se que muitos caranguejos não sobrevivem ao saírem do mangue, pois o trajeto até cumprirem o seu destino é longo. Às margens do rio, Rita repetia “ele não terá um futuro como o meu”, enquanto, desolada e enlameada, retirava das águas o corpo inerte de seu ÚNICO FILHO.
por Carina Marqui Pereira – @ca.rina7777
* Texto publicado conforme versão enviada pelo(a) autor(a), sem qualquer interferência ou edição do Pacote de Textos.
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